Hans-Jürgen Syberberg: "Quero manter a minha independência de criação"

Homenageado na recente edição do Lisbon & Estoril Film Festival, o autor do monumental Hitler, Um Filme da Alemanha faz um balanço da sua obra e fala da sua relação com o cinema, com o seu país e com a Europa.

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Hans-Jürgen Syberberg no último Lisbon & Estoril Film Festival DR
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Hitler, Um Filme da Alemanha DR
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Ludwig, Requiem para um Rei Virgem DR
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Parsifal DR

Bastaria o gigantesco e controverso Hitler, Um Filme da Alemanha (1977) e a trilogia sobre a cultura e as artes alemãs constituída por este filme e por Ludwig, Requiem para Um Rei Virgem (1972) e Karl May (1974), para que Hans-Jürgen Syberberg, quase a chegar aos 80 anos, fosse uma referência cinematográfica maior. Mas há quase duas décadas que não faz filmes. Veio ao Lisbon & Estoril Film Festival, em que foi homenageado.

Foi um realizador extremamente importante nos anos 70, até meados dos anos 80, com a trilogia sobre a Alemanha e outros filmes. Mas, nos últimos anos, não tem feito nada. O que sucedeu?
Há vários motivos. Os filmes que gostaria de fazer não têm condições de apoio; os financiadores, quer privados quer públicos, não os apoiam. Os media têm grande influência na produção de um filme, e esse é um jogo que não me interessa. Quero manter a minha independência de criação e não tenho meios para a concretizar.

Uma das coisas que mais caracterizam o seu cinema é que desde Ludwig, Requiem para Um Rei Virgem se tornou um cineasta de estúdio. É verdade que Ludwig foi rodado em apenas dez dias?
Sim. O orçamento era pequeno, o estúdio caro, portanto tinha de se fazer tudo muito depressa. Não podia ultrapassar o orçamento e dispunha de muito pouco tempo.

Em Hitler, Um Filme da Alemanha há mesmo um estúdio dentro do estúdio, o Black Maria, de Edison. Portanto, voltou aos primórdios do cinema. Depois, em Parsifal, o estúdio era também um palco, e isso continuou nos filmes seguintes, A Noite, Pentesileia, etc... Aliás, também porque, nesses casos, fez quer um filme, quer um espectáculo teatral.
Sim, foi isso, porque o teatro me deu a possibilidade de fazer mais coisas. Obviamente que uma das origens do cinema é o teatro, e as características do teatro passaram para o cinema. No cinema expressionista alemão dos anos 20 isso é patente.

Mas, a partir de A Noite, fez uma série de filmes só com Edith Clever, nalguns casos com ela representando todas as personagens de uma peça. Porquê este solilóquio, ou monólogo, embora a dois: só com o realizador e Edith Clever como intérprete?
São de facto monólogos, mas feitos entre mim e um actor, uma actriz no caso. Há um lado prático, — é muito mais económico, mas também permite uma muito maior concentração no trabalho, e pode-se criar algo de muito interessante só com uma pessoa. E há um aspecto intelectual, porque numa pessoa existe o mundo todo, e com a expressão corporal e verbal de uma só pessoa pode-se abordar o mundo todo.

Mas o seu cinema também começou com o teatro, porque os primeiros filmes, ainda na Alemanha de Leste, foram documentos em 8mm dos espectáculos do Berliner Ensemble de Brecht.
Brecht foi um dos primeiros autores que me interessaram, e, como também aprendíamos na escola, os seus textos eram de alguém que estava muito presente. Não escrevi sobre os seus espectáculos, nem tirei fotografias, mas, sim, filmei-os. E, ao passar os registos para filme usei as possibilidades do cinema, como a montagem, e isso foi muito interessante e, no fundo, uma forma pioneira de ver Brecht.

Mas Brecht continuou a ser uma influência importante na sua obra. Por exemplo, pensando nas cenas com marionetas no Hitler, que são muito brechtianas.
De facto, a ideia das marionetas veio-me de Kleist.

Ah, Sobre o Teatro de Marionetas, claro!
Sim, mas de facto, embora ele nunca tenha usado marionetas, as figuras de Brecht assemelham-se muito. Há esse aspecto brechtiano.

Já que falamos de Kleist, ele é notoriamente um autor da sua preferência: voltou a ele três vezes, em San Domingo, Pentesileia e A Marquesa de O.
Já no liceu tinha Kleist muito presente. No final do liceu tive, aliás, de fazer um trabalho sobre Kleist, e foi uma influência que permaneceu. Edith Clever já tinha feito A Marquesa de O com Eric Rohmer, com mais intérpretes, e comigo ela interpretou todas as personagens. Uma das cenas mais importantes é a da violação, e é muito interessante ver como Rohmer a fez e como depois eu a fiz: no filme dele, a marquesa é violada enquanto dorme e no meu essa cena demora dez minutos, e é muito intenso, porque Edith Clever interpreta quer a marquesa, quer o conde que a viola.

Voltando a Brecht. Ao longo da sua obra, fez uma espécie de “escândalo estético”: combinou as influências de Brecht e de Wagner, a “distanciação” de Brecht com a “obra de arte total” de Wagner, dois conceitos e práticas que temos como opostos.
Há alguma influência de Wagner em Brecht. Para mim, há um grande parentesco entre eles e, apesar de terem vindo de realidades históricas muito diferentes, acho que têm aspectos parecidos.

Se se dissesse isso a Brecht, ele ficaria furioso!
Sou da escola de Brecht, mas muito desrespeitoso. Os monólogos em Wagner, como no Parsifal, teriam fascinado Brecht, se ele tivesse visto as óperas.

Mas Brecht interessava-se pelas realidades políticas e sociais, Syberberg interessa-se pelo imaginário, a arte e a cultura — não é assim?
Com o passar dos anos já não interessam muito as posições políticas de Brecht, o que prevaleceu foram os seus textos e a sua estética.

Foi pelo prisma da arte, ou também através dela, que abordou a História, a História da Alemanha, nessa colossal trilogia de Ludwig, Karl May e Hitler.
Brecht era marcado pela História, era isso que lhe interessava, e eu também tenho nas minhas obras o interesse por essa componente da História, que sempre me fascina. É muito difícil apresentar um rei, como Ludwig [Luís II da Baviera], ou Hitler, portanto, o interessante são as formas de representação; é preciso tomar as realidades históricas e torná-las “irreais” para voltar a pensá-las.

Mas há um princípio de Brecht que sempre manteve no seu cinema, o que ele definia como “teatro antiaristotélico”. O seu cinema é “antiaristotélico”, contra o naturalismo e o realismo.
Nunca me interessei por stories, por narrativas lineares, o que me interessa é o que me influencia, o que são as minhas preocupações.

Há um aspecto muito importante, que é uma espécie de degenerescência da arte, o kitsch, que é algo sempre presente na trilogia da Alemanha. Em Ludwig, o príncipe regente diz: “É preciso fazer de Ludwig um rei do kitsch.” Karl May é ele próprio um escritor kitsch, e o culminar é em Hitler, em que o horror também é o do artista kitsch que se tenta apoderar e usar a “grande arte alemã”.
Isso interessa-me muito, e abordei o kitsch tornando-o algo de agressivo e horroroso, há um confronto entre o kitsch e a arte, e nisso Wagner torna-se importante: em Hitler, no princípio há todas as canções e brincadeiras, e depois, quando Wagner se vai tornando dominante no filme, então, aí sim, começam-se a colocar as questões realmente importantes.

Hitler, Um Filme da Alemanha provocou uma enorme controvérsia: foi acusado de ambiguidade se não mesmo de fascínio por Hitler. Ora, provavelmente o mais importante é que nos dá a entender que Hitler foi uma pessoa que fascinou e teve milhões de seguidores.
As recepções foram muito diferentes: em Londres foi aceite, em Nova Iorque, surpreendentemente, foi muito bem recebido, em Paris houve ameaças de bomba e na Alemanha foi um tabu, ignorado.

Mas foi importante para si dar a perceber que, além de um indivíduo, Hitler era uma espécie de produto colectivo de nós todos, das pessoas daquela época, aquilo a que Susan Sontag, no seu famoso ensaio sobre o filme, chamou “our Hitler”?
É uma questão muito importante. Trata-se mesmo do fenómeno cultural e político de uma pessoa, Hitler, como indivíduo e produto colectivo. Nunca vi Hitler como uma figura real, mas mesmo como uma marioneta. E Sontag percebeu muito bem o filme.

Há muita coisa intrigante em Hitler, Um Filme da Alemanha, mas há uma que sempre me intrigou particularmente na música: há sobretudo Wagner; contudo, o filme termina com Beethoven, com a abertura do Fidelio, em que há o toque da trompete que é o anúncio de que a liberdade se aproxima. Será que no final do filme, depois de todo o horror, quis dar um sinal de redenção?
A liberdade, sim, do que cada um possa entender como liberdade.

Considera Hitler um trabalho de luto, como Freud o definiu?
Na altura, foi assim que se entendeu e o processo foi bastante difícil e complexo. Há muito trabalho, mas também luto.

Falámos de Beethoven, há Wagner no Ludwig e em Hitler, e há Mahler em Karl May. Acha, como o grande filósofo Ernst Bloch, que a música transporta “o espírito da utopia”?
A trompete no final de Hitler é mesmo esse espírito da utopia. É algo que há muito nos meus filmes.

Entre Ludwig e HitlerKarl May. Agora, aqui em Portugal, as pessoas nem sequer sabem quem foi Karl May [escritor alemão de relatos de aventuras em lugares distantes, 1842-1912]. Porque achou importante dedicar-lhe um filme?
Karl May criava outros mundos, foi também perseguido, e esta sua dualidade, de criar outras realidades mas também ser objecto de perseguição, é algo em que me revejo muito.

E é por isso que o achou importante numa trilogia sobre a Alemanha?
Há ligações entre Ludwig, Karl May e Hitler. Hitler apreciava muito Wagner e Ludwig, mas também Karl May — um dos deveres dos alemães no tempo de Hitler era ler Karl May. O que diferencia Hitler dos outros dois é que não criou um mundo de fantasia, mas uma realidade fatal; o que dele prevaleceu foram os campos de concentração, as câmaras de gás, todo esse horror.

A seguir a Hitler veio Parsifal, a ópera de Wagner. Há duas coisas no filme que não se podem deixar de ter em conta: uma é que acção decorre num estúdio que é um palco, com a máscara mortuária de Wagner. Porquê?
Parsifal foi a última ópera de Wagner, que já estava próximo da morte. A máscara corresponde a uma realidade, mas a morte, sendo algo de muito palpável, está também para lá da realidade.

 

A outra é que o papel de Parsifal não tem um intérprete único, mas sim um rapaz e uma rapariga. Porquê?
Há uma separação do princípio masculino e do feminino, mas eles fundem-se para que outro ser exista, e este jogo entre o ser individual e a união para criar outro indivíduo é como para encontrar o Graal, que é o centro do Parsifal.

Se dantes já tinha uma visão desencantada e pessimista da realidade política e social da Alemanha, da “miséria alemã”, hoje ainda a tem mais — da Alemanha e da Europa.
Hoje não estou pessimista, agarro-me à energia que tenho, às coisas que posso fazer. Já Marx falava da miséria alemã, o que me influenciou. Mas fui a um local que estava deserto, era um horror, e voltei a construir e a criar para que seja suportável viver naquele sítio, reconstruo a minha aldeia de infância, há uma comunidade, um grande sentido de entreajuda, reconstruo sítios que estavam destruídos, como a igreja. Todos os dias escrevo no meu site, tento criar uma forma artística de reflectir sobre o que faço.

Tinha insistido muito na “miséria alemã”, que só a arte poderia salvar. Não é uma nostalgia por uma Alemanha artística e cultural de que se sente o continuador e está submersa por uma Alemanha que é potência económica e com uma ordem social muito hierarquizada?
Não posso estar a idealizar a Alemanha de Goethe e Schiller, ou de Hegel, e tento ultrapassar a realidade e chegar a outro patamar pela imaginação.

É preciso não esquecer que em Hitler é citado Kant: “As estrelas acima de mim e a lei moral em mim.” Sente-se um herdeiro da Aufklärung, das Luzes alemãs, e do romantismo de Weimar, de Goethe e Schiller?
Sim, mas com o material de hoje e as preocupações da actualidade.

Cultiva as polémicas, porque depois das reacções suscitadas por Hitler, Um Filme da Alemanha, num escrito seu fez comentários sobre o sucesso dos judeus e de como os judeus dominariam a nossa época que são bastante anti-semitas. Como reage?
Claro que tenho adversários, mas continuo a fazer a minha vida e a criar. Tudo o que escrevi verifica-se no teatro e no establishment cultural, mas superei essa controvérsia e os adversários e hoje sou muitas vezes convidado para discutir esses assuntos.

Será que agora está a reconstruir a sua Heimat [local de origem ou pertença]?
Este vaivém da luta e do ataque é dirigido ao establishment cultural, não às pessoas em si, mas quebrei essa fase e agora, com base em toda a minha experiência, estou a reconstruir. Tem de se tomar uma direcção: retiraram-me a possibilidade de fazer filmes ou teatro; por isso tenho de seguir outro caminho, o da reconstrução da Heimat e a persistência de publicar na Internet. E o que acontece é muitas pessoas perguntarem-me e dizerem-me: “Venha contar a sua história.” O caroço é sempre o mesmo, as formas de exprimir é que são diferentes.

Encontrou a serenidade?
É difícil, mas encontro-a.

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