Os hackers (norte-coreanos?) da Sony e uma comédia já são assunto de Estado nos EUA

Washington acredita que a Coreia do Norte é responsável — no dia que se aproximava de Cuba, Obama também se preocupava com um filme de Seth Rogen. Mitt Romney, Mia Farrow, Donald Trump e Bill Maher juntos no lamento contra derrota para a liberdade de expressão.

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O poster do filme que já não vai estrear-se, a comédia "The Interview" DR

No mesmo dia em que os EUA viviam um marco diplomático nas relações com Cuba, o Presidente Barack Obama estava a braços com outro incidente internacional — a comédia de Seth Rogen sobre o assassinato por encomenda do líder norte-coreano Kim Jong-un. Com fontes da Casa Branca a confirmar que o regime de Pyongyang está “envolvido de forma central” no gigantesco ataque informático à Sony, Obama encorajou os americanos a ir ao cinema. Mas a estreia de The Interview já foi cancelada e Hollywood lamenta uma capitulação que ameaça a liberdade de expressão.

Em causa está um ataque que revelou os conteúdos de dezenas de milhares de e-mails de funcionários de uma das majors de Hollywood, dados financeiros e opções estratégicas da Sony pelo menos cem terabytes de informação interna, dizem os hackers. E que na terça-feira evoluiu para uma ameaça à segurança dos espectadores, avisados pelo grupo que se identifica como Guardians of Peace (GOP) de que na estreia de The Interview, agendada para dia 25, “o mundo estará cheio de medo. Lembrem o 11 de Setembro 2001. Recomendamos que se mantenham distantes dos sítios àquela hora”, avisou o grupo.

Quarta-feira, a Sony disse apenas em comunicado que “já não tem qualquer plano de saída para o filme”. A estreia agora cancelada afecta também os mercados internacionais — Portugal iria ver o filme a partir de 29 de Janeiro.

Nem Hollywood nem outras empresas sofreram alguma vez um ataque que o New York Times identificou quarta-feira, citando fontes da administração Obama, como “patrocinado pelo Estado” norte-coreano e como “muito mais destrutivo do que algum alguma vez visto em solo americano” — além de ter “uma sofisticação que há um ano diríamos que estava além das capacidades” da Coreia do Norte, diz ainda um responsável dos serviços de informação dos EUA. Também a CNN, a Associated Press e a CNBC noticiaram quarta-feira que as suas fontes diziam que os hackers estavam a trabalhar para o governo da Coreia do Norte. A CNN indica que esta quinta-feira haverá uma confirmação oficial ao país.

O Presidente Obama, entrevistado pela ABC na quarta-feira, comentou o ataque “muito sério” à Sony. “Por agora a minha recomendação seria: vão ao cinema”, disse antes de saber da decisão de cancelamento da estreia. “Estamos a investigar, estamos a levá-lo a sério. Estaremos vigilantes: se virmos algo que pensamos ser sério e credível, avisaremos o público”. O Departamento de Segurança Nacional mantém que não tem informações sobre se um ataque aos cinemas que estreassem The Interview seria de facto provável. E da Coreia do Norte nada se sabe para já. Durante o ataque, de Pyongyang saíram, como é costume no silencioso e hermético regime, poucas palavras. Dia 2, as autoridades norte-coreanas disseram que seria preciso “esperar para ver” se têm algo a ver com o caso e dia 6 a Comissão de Defesa Nacional norte-coreana negava a autoria do ataque informático, que ainda assim classificava como um “acto justo”.

O hack começou há quatro semanas e segundo o diário norte-americano a Casa Branca está a discutir se deve ser directa e publicamente imputado a Pyongyang como “um ataque ciberterrorista” — isto por existirem riscos para as relações internacionais e para negociações sobre reféns japoneses em curso há anos (a Sony é japonesa). Tendo como alvo um dos grupos de média mundiais e um dos maiores estúdios de cinema de Hollywood, focou-se desde o início no filme protagonizado por Rogen (que co-realiza e escreveu com o seu colaborador Evan Goldberg) e James Franco. Sobre a polémica, Seth Rogen riu-se à revista Rolling Stone: "Na melhor das hipóteses fará com que um país se liberte e na pior causará uma guerra nuclear. Há grandes margens neste filme".

Uma paródia que os próprios e-mails internos da Sony descrevem a certa altura como “desesperadamente sem graça” e cujo autor agradecera há uma semana ao estúdio ter tido “tomates” para apoiar, apesar do ataque que lançou uma vaga de insegurança sobre o sector. Quarta-feira, os quatro maiores exibidores dos EUA juntaram-se a outras cadeias menores americanas e canadianas na recusa de estrear o filme após as ameaças à segurança dos espectadores por parte do GOP. Mais de 19.500 ecrãs ficavam de fora dos planos do estúdio, que segundo a mesma fuga de informação gastou 36 milhões de euros com The Interview (e mais 28 milhões na sua promoção). “Respeitamos e compreendemos as decisões dos nossos parceiros e, claro, partilhamos totalmente o seu interesse supremo na segurança dos empregados e espectadores”, disse a Sony. Horas depois, Hollywood criticava já a major por ter suspendido a estreia nacional do filme -este chegou a ter uma estreia oficial, dia 11, em Los Angeles.

A linguagem bélica é indissociável deste caso desde que o Governo de Pyongyang descreveu The Interview, numa carta enviada em Junho ao secretário-geral da ONU, como “patrocínio não disfarçado de terrorismo, bem como um acto de guerra”. O republicano Mitt Romney escreveu à Sony no Twitter: “não cedam, lutem” (e sugeriu: “lancem The Interview gratuitamente online globalmente. Peçam aos espectadores um contributo de cinco dólares para combater o ébola”). Agora, o New York Times relata que “a Sony capitulou”. “Os maus ganharam”, tweetou Mia Farrow, secundada por Donald Trump, pelo realizador Michael Moore, pelo escritor Neil Gaiman, pelo humorista Bill Maher e pelo argumentista Aaron Sorkin — um grupo inesperado de concordâncias.

“Os hackers ganharam”, escreve o actor Rob Lowe, “um acto de cobardia não-americana”, diz o apresentador Jimmy Kimmel, “uma ameaça à liberdade de expressão”, acusa o actor e realizador Ben Stiller, “um dia triste para a expressão criativa”, queixa-se o actor Steve Carell, todos amigos de Rogen e Franco, todos no Twitter. Os dois últimos acompanharam o seu tweet com uma imagem de O Grande Ditador, de Charles Chaplin, a famosa sátira sobre Adolf Hitler realizada em 1940.

Outra comédia sobre temas quentes — e que envolve a Coreia do Norte — que tem perpassado as conversas sobre o caso The Interview é o filme Team America: World Police, estreado em 2004 pelas mãos dos autores do abrasivo South Park, Trey Parker e Matt Stone, em que uma força paramilitar dos EUA se encarrega de impedir o plano de assassinato do então líder norte-coreano Kim Jong-il. Um dos exibidores de menor dimensão que queria estrear o filme de Rogen, a Alamo Drafthouse, do Texas, anunciou que no dia de Natal vai então passar Team America.

É uma rara situação aquela em que um filme de um grande estúdio se centra na tentativa de assassinato de um líder mundial vivo e no poder, segundo disseram historiadores de cinema que o New York Times agrupa com outros estúdios e exibidores nas críticas à Sony pelo facto de não ter sido mas rápida e ponderada no seu processo de decisão – de feitura do filme e de reacção às ameaças do GOP. “Os norte-coreanos devem estar divertidíssimos. Nunca ninguém fez algo tão estrondoso em termos de manipulação política”, disse à Reuters o analista Jim Lewis, do think tank Center for Strategic and International Studies. "O hack da Sony e as ameaças contra os cinemas que planeavam projectar The Interview é provavelmente a primeira guerra literalmente cultural da América", escreveu esta quinta-feira o cronista da Time James Poniewozik, que defende que a estúdio devia mostrar o filme ao mundo em streaming "já".

Entretanto, em Washington, a Casa Branca está a “considerar uma série de opções na avaliação de uma potencial resposta”, disse a porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, citada pela Variety e sem nunca mencionar a Coreia do Norte. A mesma fonte sublinha que os EUA “levam muito a sério qualquer tentativa de ameaçar ou limitar a liberdade de expressão dos artistas”.

Os serviços de informações terão encontrado um rasto que envolve tanto ferramentas e software comuns quanto outros associados a ataques de alguma magnitude a bancos e empresas de média na Coreia do Sul e na Arábia Saudita (este último associado sem confirmação ao Irão). As mesmas fontes falam de centros e servidores espalhados pelo mundo de onde partiram os ataques e da possibilidade de os hackers terem contado com ajuda no interior da Sony.

Ainda assim, escreve o New York Times, como vão os EUA reagir está em aberto, nomeadamente quanto ao uso de contramedidas de ciberterrorismo. Os EUA, lembra o jornal, raramente apontam o dedo a países de que suspeitam em ciberataques — que não foram poucos nos últimos meses, envolvendo bancos e o próprio governo americano.

Este ataque gerou não só o embaraço de executivos e produtores da Sony, declarações infelizes sobre protagonistas do sector, mas também tornou públicas mensagens e dados internos que revelaram comentários racistas, ordenados discriminatórios em termos de género e muitos dados pessoais sensíveis de funcionários da Sony — quatro ex-trabalhadores processaram já a empresa. Filmes por estrear foram entregues à pirataria, guiões vieram a público, a imagem de uma indústria rachou e as falhas da sua liderança tornaram-se visíveis.

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