Habemos Cine Argentino

O AR, primeiro festival dedicado ao cinema argentino, arranca esta quinta-feira em Lisboa. Será um apanhado do que de mais recente foi feito naquele país, de 14 a 17 de Maio, no Cinema S. Jorge.

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El Escarabajo de Oro, de Alejo Moguillansky e Fia-Strina Sandlund
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Sucesos Intervenidos
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Living Stars, de Mariano Cohn e Gastón Duprat

“Como é morrer?” "É como ir num comboio a grande velocidade.” O último diálogo da pequena jóia Japonesita, uma das oito curtas-metragens que serão exibidas no AR, pode ser interpretado como uma metáfora do próprio filme, ou mais ainda, do próprio cinema argentino e dos seus mecanismos de sobrevivência. Contra a morte, um mergulho veloz no seu próprio universo. Japonesita é um filme feito de outros filmes, uma obra nova a partir de material de arquivo, o chamado found footage, e tem como resultado uma história de ficção original criada a partir de imagens reais.

Da mesma maneira, o cinema argentino viveu mais quando supostamente estaria condenado à morte, e renasceu com mais velocidade no ápice da crise. É um cinema que vive de comer outros cinemas e outras imagens, numa antropofagia cultural. Assim como Japonesita evoca a memória colectiva do século XX ao mesmo tempo que nos convida à fantasia, esta amostra do que há de mais recente na filmografia argentina revela que é na vertigem que nascem as histórias e a própria compreensão da realidade.

“A Argentina produz mais de 150 longas-metragens por ano, e essas eram as mais criativas entre as independentes neste último”, explica a co-curadora Susana Santos Rodrigues. O festival apresenta seis ficções, dois documentários e oito curtas. As curtas são actuais com material antigo, o que já reflecte o quanto o caldo criativo daquele país vem também do acto de olhar o tempo todo para o próprio cinema e reinventá-lo. Aqui a proposta da mostra, que é ser uma janela para que possamos ver o que não teríamos outra maneira de assistir, revela-se por inteiro: entre as longas, há realizadores estreantes e consagrados, e todos os filmes estiveram em festivais internacionais relevantes. “As primeiras obras não estão apenas por o serem, e sim por constituírem filmes que já nasceram maduros, com uma criatividade narrativa forte”, explica Susana. Um país que se filma em acto contínuo, com urgência.

Living Stars, de Mariano Cohn e Gastón Duprat, um dos dois documentários da mostra (sábado, dia 16, às 14h), quebra completamente as convenções do género e mostra pessoas comuns numa situação inusitada do quotidiano, permitindo-nos conhecer personagens de uma forma quase absurda.



De outra maneira, a ficção El Escarabajo de Oro, de Alejo Moguillansky e Fia-Strina Sandlund, o filme de abertura do festival (esta quinta-feira, às 20h no Cinema S. Jorge) também flirta com o impossível. É ao mesmo tempo uma comédia e metalinguagem do cinema, baseia-se no conto homónimo de Edgar Allan Poe e n' A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, “adaptada do ponto de vista dos piratas”. Recebeu o prémio de melhor filme no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires (BAFICI) em 2014. “Nos filmes argentinos, Shakespeare mistura-se com as histórias de amor dos jovens de forma muito natural”, explica Susana, referindo-se à criatividade narrativa dos realizadores.



Todas as sessões deste festival são precedidas de uma curta de cinco minutos pertencente a Sucesos Intervenidos, um projecto que abraçou o acervo do maior dos “telejornais cinematográficos” latino-americanos, o mítico noticiário Sucesos Argentinos, e fez dele cinema. O resultado foram 25 curtas-metragens, das quais oito podem ser vistas no AR. O já citado Japonesita, de Ignacio Masllorens, tem imagens e narração que fazem lembrar o icónico La Jetée de Chris Marker, realizado em 1962. A curta já foi descrita como uma “jóia fílmica da curta-metragem latino-americana”.

O chamado Novo Cinema Argentino inicia-se em 1997 com a longa-metragem Pizza, Birra, Faso, de Adrian Caetano, exibida no festival de Mar del Plata. O filme foi realizado com baixo orçamento e conquistou uma série de prémios, injectando energia e reconhecimento no mercado e estimulando cineastas. Comumente associado à crise e tido de certa forma como resultado dela, este cinema era novo em mais de um sentido: não apenas revelava o estado das coisas no país, ajudando a perceber a própria realidade à medida que a filmava, como foi maioritariamente realizado por jovens com idades à volta dos 25 anos, que completaram os estudos e partiram para o “mercado de trabalho” no momento em que o país enfrentava o caos.

Quase 20 anos depois desse renascimento - e ainda na esteira dele -, o que esta selecção de filmes recentes nos mostra é que o engajamento político pode assumir várias formas, não necessariamente óbvias. Para Susana Rodrigues, o importante de Pizza, Birra, Faso, filme inaugural deste novo movimento, "foi levar uma imagem do quotidiano para o cinema”. Isso continua presente e está reflectido na selecção do festival. O plano em que assistimos a um jogo de futebol visto de cima ao som da Primeira Sinfonia de Schumann em La Princesa de Francia, de Matías Piñeiro (domingo, dia 17, às 18h), é um exemplo. O ballet urbano num campo de betão, dentro da noite da cidade, fala ao mesmo tempo da simplicidade quotidiana e da força visual de um momento deslocado na ficção.

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