Há uma reestruturação em curso no CCB para um plano que deverá cair

No último ano, foram investidas dezenas de milhares de euros num plano para o eixo Ajuda-Belém que o Governo PSD-CDS deixou por aprovar. João Soares, o novo ministro da Cultura, discorda “aberta e absolutamente” desse plano. Fernando Medina também já disse que deve ser extinto.

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Ao longo de 2015, o CCB investiu dezenas de milhares de euros numa reestruturação interna e em projectos externos Pedro Cunha
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O novo ministro da Cultura, João Soares, disse ao PÚBLICO discordar “aberta e absolutamente do chamado Plano Estratégico Cultural da Área de Belém”. Enric Vives-Rubio
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O polémico plano desenhado pelo presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), António Lamas, para o eixo Ajuda-Belém foi deixado por aprovar pelo Governo PSD-CDS, que o lançou. Nuno Ferreira Santos

O polémico plano desenhado pelo presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), António Lamas, para o eixo Ajuda-Belém foi deixado por aprovar pelo Governo PSD-CDS, que o lançou. No entanto, tem estado em curso. Ao longo de 2015, o CCB investiu dezenas de milhares de euros numa reestruturação interna e em projectos externos tendo esse plano em vista. Um plano que, como se previa, o novo Governo PS deverá agora deixar cair. Nas suas primeiras declarações públicas sobre o tema, o novo ministro da Cultura, João Soares, disse ao PÚBLICO discordar “aberta e absolutamente do chamado Plano Estratégico Cultural da Área de Belém”.

“Discordo enquanto ministro da Cultura e enquanto antigo presidente da Câmara de Lisboa. Aliás, o dito plano foi elaborado e decidido sem qualquer consulta à Câmara de Lisboa, o que é obviamente inaceitável”, explicou João Soares ao PÚBLICO por email, em resposta a uma série de perguntas. No princípio de Dezembro, Fernando Medina, o novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), também tornou pública a sua opinião, afirmando que o único “final feliz” seria a “extinção” da missão coordenada por Lamas.

Segundo pretendido por essa estrutura de missão, a zona monumental de Belém e da Ajuda adoptaria um modelo de gestão próximo do implementado por Lamas com reconhecido sucesso no Parques de Sintra-Monte da Lua: sob uma mesma administração, sentada no CCB, deveriam ficar equipamentos e bens culturais de tão diferentes escalas e características como o Mosteiro dos Jerónimos, pelo menos seis museus – Berardo, Coches, Etnologia, Arte Popular, Marinha, Electricidade e o novo Museu EDP, ainda em construção –, vários palácios (Nacional da Ajuda incluído), o Padrão dos Descobrimento e a Torre de Belém, a Cordoaria Nacional, o Arquivo Histórico Ultramarino, a Biblioteca da Ajuda e dois jardins botânicos – o Tropical e o da Ajuda. Entre os objectivos programáticos, em grande parte virados para o turismo, estavam a criação de percursos temáticos relacionados com os Descobrimentos, a criação do Distrito Cultural de Belém e a ampliação do CCB, com a construção do Módulo 4, inicialmente previsto mas nunca executado.

Em Outubro de 2013, num artigo para o PÚBLICO, Lamas escrevia: “Desde que fui responsável por promover, no fim dos anos 1980, o Plano de Salvaguarda da Zona Ajuda-Belém, o CCB e o projecto de requalificação da envolvente do Palácio da Ajuda, que penso que as unidades que constituem o património de Belém, na tutela de diversas instituições, beneficiariam de uma gestão conjunta.” Ia mais longe: à semelhança de Sintra, explicava Lamas, o eixo Ajuda-Belém “suporta uma rentável ‘zona económica de influência’” – com negócios de restauração, comércio e hotelaria. O hoje presidente do CCB sublinhava que estes agentes “exercem actividades totalmente dependentes da qualidade do ‘cenário’ patrimonial” em que se inscrevem, mas “ainda não participam na sua valorização nem sequer promoção”. Um ano depois, pouco após a sua chegada ao CCB, Lamas explicava, já em entrevista ao PÚBLICO, que provavelmente não teria aceitado o cargo a não ser pela missão de concretizar este plano aglutinador. Nos bastidores do CCB, entre funcionários, começou então a temer-se pelo futuro de uma das maiores instituições culturais portuguesas: o próprio centro e a sua missão original.   

Nessa entrevista ao PÚBLICO, Lamas assegurava: “Não vim para o CCB para ser um presidente liquidatário.” No entanto, menos de um ano volvido, entregava ao executivo de Pedro Passos Coelho um Plano Estratégico em que podia ler-se que a Fundação CCB se encontrava “em transformação e conclusão do [seu] programa fundador”.

Esse documento de 35 páginas está datado de 24 Agosto de 2015, altura em que ficou disponível online para consulta pública. A sua elaboração fora aprovada em Conselho de Ministros menos de dois meses antes – a 18 de Junho. Já a concretização desse plano ficou pendente: a 29 de Junho de 2015, devido ao calendário eleitoral e à escala do programa em causa, o executivo de Passos Coelho disse não querer tomar "qualquer decisão definitiva". Lamas, porém, começara a trabalhar no plano logo após a sua chegada ao CCB – tal como previsto quando fora convidado.

Investimentos

Lamas entrou em funções no CCB a 17 de Agosto de 2014. A 28 de Outubro do mesmo ano, o CCB investiu 21 mil euros numa “aquisição de serviços jurídicos tendentes à consultoria em matéria de contratação”. O PÚBLICO sabe que, desde então, cerca de 15 funcionários deixaram o centro. Outros, com novas funções, foram contratados. O CCB recusou esclarecer quantos e para que cargos. Lamas respondeu por escrito a uma série de cinco perguntas que o PÚBLICO remeteu à sua presidência. Não houve lugar a segunda ronda de perguntas ou esclarecimentos adicionais. Entre as respostas, fez saber que a reestruturação da instituição em termos de pessoal decorreu de “um diagnóstico à estrutura orgânica” e de “uma análise sistemática de prioridades de melhoria ao nível da gestão”. Visou-se uma “optimização da gestão”.

Entre muitos outros investimentos, no ano passado o CCB gastou também sete mil euros num levantamento arquitectónico do Jardim Botânico Tropical, com o qual não tem qualquer ligação física e que não está sob a sua tutela. Foi em Abril. No mês seguinte, mais 15 mil euros foram gastos num levantamento topográfico do mesmo jardim, durante muito tempo sob tutela do Instituto de Investigação Científica Tropical, que, por sua vez, a 31 de Julho foi fundido com a Universidade de Lisboa e a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas.

Segundo Lamas, esses gastos com “o mais relevante mas também mais desconhecido e degradado jardim histórico de Belém” foram feitos com “expressa concordância da tutela” e, na verdade, não saíram do orçamento do centro: foram feitos “aproveitando a oportunidade de apoio do POR Lisboa”, o Programa Operacional Regional de Lisboa, que funciona com fundos europeus. Os estudos ao jardim foram realizados, diz Lamas, “para permitir a sua rápida requalificação e divulgação”.

Entre os investimentos estão ainda a produção de um site para divulgação da zona, o desenho e a produção de mapas infográficos sobre o património cultural do eixo e a preparação de uma grande e já anunciada exposição sobre a Exposição do Mundo Português, a grandiloquente mostra com que, em 1940, o Estado Novo ocupou a zona de Belém e para qual foram criadas estruturas como a que alberga hoje Museu de Arte Popular e a própria Praça do Império.

Na preparação e no acompanhamento deste tipo de candidaturas ao POR Lisboa, o CCB investiu cerca de 34 mil euros. Para esta última exposição, inicialmente planeada para o final de 2015, recebeu cerca de 74 mil euros. Sobre ela, diz Lamas, “brevemente haverá mais novidades”. Entretanto, o presidente do CCB avança com uma notícia: o centro passará a ter cinema no Grande Auditório, “tal como inicialmente previsto com a instalação de um aparelho analógico sofisticado mas que rapidamente se tornou obsoleto” – o centro comprou em Junho um ecrã e sistema para projecção de cinema digital, incluindo 3D, no valor de 75 mil euros. As potencialidades deste novo equipamento ficaram demonstradas, diz Lamas, pelo “sucesso da apresentação de filmes em antestreia, e durante o Lisbon & Estoril Film Festival, entre Junho e Dezembro de 2015”. Iniciativas que abrem “uma nova área de actividades culturais”.

Outra nova área de actividade: a gestão de parte dos serviços de restauração albergados no interior do centro, até agora em exploração externa. O mesmo acontece com a manutenção do próprio edifício, que a Fundação CCB tem agora a seu cargo. Opções que implicaram também investimentos. Por exemplo, 17 mil euros numa boca-de-fogo para a cozinha, 18 mil em café em grão, quase dez mil em ferramentas. 

"Lamentável", diz Soares

João Soares é taxativo na sua reacção ao panorama que estas sucessivas realidades configuram: diz que a não consulta da CML sobre o plano do eixo Ajuda-Belém é “inaceitável” e que, “por si só, bastava” para conseguir a sua “oposição”. Mas acrescenta que essa oposição se fundamenta também em “discordâncias de natureza substantiva”. “Sobre as alterações e os investimentos já realizados, só posso repetir enfaticamente a minha discordância. Eles prejudicam e são desconformes à missão e ao papel do Centro Cultural de Belém. Aliás, esses efeitos negativos já se sentem. Repito: é lamentável!”

Tal como Lamas, a tutela apenas permitiu ao PÚBLICO uma ronda única de perguntas e respostas. Ficam por esclarecer quais os efeitos negativos a que o ministro se refere. Entre os factos que preocupam os funcionários do CCB estão as consequências para a programação artística, que muitos acreditam estar actualmente secundarizada, tal como temido por críticos iniciais do plano.

A programação artística, até hoje a principal missão do centro, continua por apresentar para a temporada de 2016-2017, apesar de estar já em curso desde a rentrée do pós-Verão.  Segundo Lamas, tanto o plano de actividades como o orçamento para 2016 foram aprovados pelo conselho directivo da Fundação CCB e submetidos à tutela. “Aguardam aprovação para a usual apresentação pública.” Ainda segundo Lamas, as actividades do primeiro trimestre, de Outubro a Dezembro, tiveram a concordância da anterior tutela.

Questionado sobre se já se encontrou com António Lamas ou se pretende discutir em breve com ele o projecto-CCB, João Soares respondeu afirmativamente, ainda que não de forma absolutamente esclarecedora: “Já me encontrei, em diversas circunstâncias, com o senhor engenheiro.”

Em Novembro, quando se pronunciou sobre o tema numa sessão extraordinária da CML, Fernando Medina criticou, entre outros aspectos, a “visão mercantilista” do Plano Estratégico apresentado por Lamas ao Governo PSD-CDS. Garantindo que a CML “não foi ouvida nem consultada”, apesar de ter manifestado “total disponibilidade para um trabalho em conjunto”, Medina acrescentou que a autarquia “decidiu não integrar o conselho consultivo” criado para apoiar a estrutura de missão coordenada pelo presidente do CCB: “Este processo não começou bem, prosseguiu pior e esperemos que tenha um final feliz, com a extinção da equipa e a confinação ao que são as competências próprias de cada um.”

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