Há um Cyrano para cada um de nós

Cyrano de Bergerac estreia-se neste sábado no Teatro Municipal Maria Matos, onde ficará em cena até ao dia 12. Depois, a história deste homem atormentado será apresentada pelo país.

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Cyrano vive um amor tão grande quanto impossível Eduardo Breda

Ele tem o que de mais selvagem e bruto um homem pode ter. Mas tem também a sensibilidade e a delicadeza que muito poucos terão. É um lutador e um corajoso. Um homem que podia ter tido o mundo, se não se tivesse afastado deste mundo que não consegue olhar para ele sem notar o seu grande nariz. Ele é Cyrano de Bergerac, personagem da peça que neste sábado se estreia no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa.

“Gosto muito desta [peça], desde logo porque tem esta curiosidade de ter sido escrita no final do século XIX, numa altura em que se fazia outro teatro”, diz o encenador Bruno Bravo, lembrando como este espectáculo foi logo um êxito quando se estreou. “E depois há esta coisa de ter uma característica popular muito forte e ser escrito aqui e ali em verso alexandrino”, continua. “Acho que é fascinante, haver o alexandrino e a possibilidade de ao mesmo tempo ser muito claro para o público.”

Apesar de se mostrar fascinado com os clássicos – já antes tinha encenado Salomé e O Retrato de Dorian Gray, ambos de Oscar Wilde –, Bruno Bravo garante que não é nada pensado. “Não me vejo como encenador de clássicos, são textos que me intrigam, além de que para mim os clássicos não têm tempo, são sempre contemporâneos”, diz. “É sempre bom trabalhar a partir destes textos, porque é um desafio constante”, continua o encenador, que acredita que, por exemplo, “ é possível fazer o Cyrano sempre”. “Podem-se fazer centenas de leituras a partir deste texto, é um texto muito aberto.”

Cyrano não é na verdade uma figura estranha, mas não deixa de impressionar por conseguir viver um amor tão altruísta quanto difícil de compreender. Conhecemos a história, mas ainda nos surpreendemos.

É como se Cyrano, aqui Paulo Pinto, fosse duas pessoas, vivesse duas vidas. Há a vida que está à vista de todos, em que deslumbra por tão destemido que é, e há aquela vida que ele imagina todos os dias, vivendo-a só para si. Nesta vida sonhada, Cyrano é provavelmente mais bonito ou, pelo menos, terá um nariz mais pequeno. Seria isto o suficiente para este homem se entregar sem medo ao amor, sentimento que tão facilmente conquista com as palavras, mas sente-se feio. 

Por isso mesmo, este romântico incurável, poeta arrebatador, prefere guardar para si o amor que sente pela mulher que todos os dias o faz sentir bem só por existir. Cyrano gosta de tal forma de Roxanne que é capaz de, por ela, emprestar as suas palavras ao jovem por quem esta se apaixonou. É através de Cristian, um bonito cadete, também ele enamorado por Roxanne, que Cyrano se declara. Ela não sabe e para Cyrano não precisa de saber. Ele contenta-se ao vê-la encantada com o seu Cristian.

“Ó não tenho ilusões! Por vezes, que folia!/ Embeveço-me, é, no azul do fim do dia,/Entro para um jardim, quando a hora suspira,/E o meu grande nariz, pobre diabo, aspira/Abril, sigo com o olhar, sob um raio de prata/De braço dado uma mulher aristocrata/com um cavaleiro, e então, penso que ao luar/Também gostaria eu com uma de passear,/Exalto-me, esqueço, e... de repente, enfim,/avisto o meu perfil no muro do jardim!”

Ele até pode não ter ilusões, mas não deixa de se lamentar. Passa umas horas terríveis, conta Cyrano, só por se sentir tão feio. “Esta é uma personagem bastante complexa e muito rica, porque na mesma pessoa concentra a brutalidade, a selvajaria, o guerreiro, o esgrimista implacável, com um homem de uma sensibilidade imensa, um poeta, um filósofo, um humanista”, diz o encenador Bruno Bravo, para quem Cyrano é “quase uma figura ideal masculina, não fosse o nariz”. “E, nesse sentido, o nariz ganha uma espécie de dimensão metafisica. É o nariz que é a identidade física máxima do Cyrano e é o que o limita, sobretudo na aproximação à Roxanne”, conta.  

“Este é um amor maior do que o homem, maior do que a vida e isso é muito bonito”, diz o encenador da companhia Primeiros Sintomas, contando que pôr em cena este Cyrano de Bergerac, peça do final do século XIX escrita por Edmond Rostand, era há muito uma vontade sua. Acontece agora que foi possível reunir as condições necessárias através desta co-produção com o Teatro Maria Matos, onde o espectáculo ficará até ao dia 12 de Outubro, entrando em digressão logo a seguir. Cyrano de Bergerac será apresentado em Guimarães, Torres Novas, Ovar, Viseu e São Miguel (Açores).

Não é de estranhar por isso que nesta temporada esta peça seja apresentada duas vezes: agora no Maria Matos pela Primeiros Sintomas e em Janeiro de 2015 no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação de João Mota e protagonizada por Diogo Infante. “São aquelas coisas que de vez em quando acontecem, às vezes há dois Hamlet em cena, agora é o Cyrano. Há muito tempo que não se encenava o Cyrano em Portugal e coincidiu de repente as duas, o que eu acho óptimo”, afirma Bruno Bravo. “Este texto não encerra nada, ele permite abordagens diferentes e eu estou muito curioso para ver a leitura do João Mota deste texto.”

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