Há 150 anos, a Veneza de John Ruskin era assim

350 daguerreótipos ligados ao célebre crítico de arte foram agora publicados em livro. São imagens com 150 anos, dos princípios da fotografia, muitas delas inéditas e descobertas num leilão de província.

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Palácio Ducal de Veneza, c.1851 Carrying Off the Palace
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Praça de São Marcos, Veneza, c. 1845 Carrying Off the Palace
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Palácio Ca' d'Oro em obras, Veneza, c.1845 Carrying Off the Palace
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Detalhe do Palácio Ducal, Veneza, c.1849-1852 Carrying Off the Palace
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Palácio Gritti-Badoer, Veneza, c.1846-1852 Carrying Off the Palace
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Detalhe do Palácio Ducal, Veneza, c.1849-1852 Carrying Off the Palace
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John Ruskin retratado por Frank Meadow Sutcliffe, 1873 Collection of the Guild of St. George, Museums Sheffield

John Ruskin pode não ser o autor de todas as imagens agora publicadas no volume Carrying Off the Palaces, mas é certamente o homem que as torna possíveis. É ele quem escolhe os locais e os elementos a fotografar, é ele quem forma os assistentes que o substituem sempre que não está atrás da câmara.

É esta a conclusão a que chegam os autores deste novo livro que reúne, segundo a crítica especializada, um “impressionante” conjunto de daguerreótipos ligados a John Ruskin (1819-1900), o crítico da época vitoriano que é um dos mais importantes teóricos de arte e arquitectura britânico de todos os tempos. Um livro que põe termo a um processo de investigação que começa há nove anos, com um leilão de província em que dois negociantes e estudiosos da fotografia do século XIX, Ken e Jenny Jacobson, compraram um lote de 188 imagens feitas em Itália, França e Suíça – Veneza e Alpes, sobretudo – na década de 1850, quando a fotografia não tinha sequer 20 anos.

Durante nove anos, o casal Jacobson trabalhou para autenticar as fotografias em arquivos e bibliotecas, chegando a viajar para confirmar algumas das localizações dos edifícios e paisagens registados nos daguerreótipos de Ruskin.

O daguerreótipo é um antepassado da fotografia – neste processo a imagem é fixada sobre uma placa de cobre com um banho de prata, formando uma superfície espelhada – e, quando surgiu, estava apenas à disposição de uma elite, já que era muito caro. Ruskin fazia parte dessa elite.

“A descoberta de 188 daguerreótipos desconhecidos de John Ruskin foi a mais excitante da nossa carreira”, disse Ken Jacobson, que co-assina o volume com a sua mulher, Jenny. Uma descoberta que só foi confirmada, explica num comunicado citado pela agência de notícias Reuters, depois de “anos de pesquisa”. A ligação destes quase 200 exemplares daquele que é um dos primeiros suportes fotográficos – começou a ser usado em 1839 - ao crítico britânico fez-se, por exemplo, pela análise dos números que aparecem no verso de algumas das imagens, escritos à mão pelo próprio Ruskin. Segundo os Jacobsons, são iguais aos que se encontram nos manuscritos do historiador que estão à guarda da Universidade de Lancaster.

A pesquisa mostra, de igual modo, que o recurso de Ruskin à fotografia influenciou de forma decisiva o estilo das suas aguarelas, defende Bernard Quaritch, importante negociante de manuscritos e livros raros, que é também o editor de Carrying Off the Palaces: John Ruskin’s Lost Daguerreotypes.

“Achamos que a qualidade e o estilo pouco ortodoxo de muitos dos daguerreótipos de Ruskin serão uma surpresa tanto para os historiadores da fotografia como para os que estudam a sua obra”, disse ainda Ken Jacobson, defendendo, no entanto, que as 188 imagens seriam sempre uma “descoberta sensacional”, mesmo que o seu autor fosse um desconhecido.

Estes daguerreótipos, segundo a Reuters, foram feitos na época em que Ruskin estava a trabalhar na obra The Stones of Venice, um tratado em três volumes sobre a arte e a arquitectura de Veneza, ainda hoje uma referência para historiadores e académicos.

O livro agora publicado inclui todos os daguerreótipos atribuídos até hoje a John Ruskin - são 325, muitos deles nunca antes publicados – e uma série de ensaios sobre os seus processos de criação e sobre os círculos artísticos em que se moveu, deixando ainda espaço às suas próprias ideias sobre a fotografia.

Leilão de província

Os Jacobson compraram os daguerreótipos de Ruskin, que incluem imagens de Veneza (a maior parte) e dos Alpes (há ainda paisagens de outras regiões da Itália, França e Suíça), num leilão no condado de Cúmbria, no norte de Inglaterra, muito perto de uma localidade onde Ruskin viveu. Faziam parte de um lote praticamente não-identificado – na caixa em que se encontravam estava apenas escrita a palavra “Veneza” – e o seu preço base era de 80 libras (pouco mais de 100 euros). Tiveram de disputar o lote com outro coleccionador, arrematando-o por 75 mil libras (100 mil euros).

Quando John Ruskin morreu, em 1900, todos os seus pertences foram confiados aos herdeiros, que deles se desfizeram em 1936, num leilão descrito como desastroso em que os seus manuscritos, desenhos, móveis e até o seu piano foram dispostos, e vendidos muito abaixo do que valiam, nos relvados de Brantwood, a grande casa na região de Cúmbria que Ruskin comprou em 1871, e que decorou com a sua colecção de minerais e cerâmicas, bem como com algumas das suas pinturas preferidas de William Turner, de Thomas Gainsborough e do círculo dos pré-rafaelitas, a irmandade em que se destacam artistas como Dante Gabriel Rossetti e John Everett Millais, que o crítico apadrinhou desde 1851.

Escreve o diário britânico The Telegraph que, nos últimos anos, e mercê desta alienação do património do crítico vitoriano, muitas das peças da colecção de Ruskin têm surgido em leilões no condado. Peças que foram, na sua maioria, compradas por famílias da região. Os daguerreótipos que os Jacobsons arremataram no leilão de 2006 pertenciam à mesma família há meio século e os negociantes que os levaram à praça por 80 libras não faziam a mínima ideia de que se tratava de daguerreótipos e muito menos de daguerreótipos do prestigiado crítico e historiador.

Um olhar preciso

Imagens fotográficas desta época são escassas e, neste caso, estão ligadas ao universo criativo de um teórico e artista que, acima de tudo, se habituou a olhar, defende o crítico de fotografia do jornal económico Financial Times, Francis Hodgson. É este especialista que chama a Ruskin “o melhor olho da Europa” e que garante que o autor “controla todo o processo de produção destas imagens, perfeitamente consciente do que elas podem significar”.

E controlar o processo ao ar-livre, no meio de uma cidade ou da natureza, não era tarefa fácil em meados do século XIX. “Daguerreótipos de exteriores são bastante raros. Era um processo complicado, fácil de corromper. A maioria dos daguerreótipos era feita em cenários interiores onde, pelo menos, algumas das variáveis eram controláveis. E, apesar de tudo, aqui temos vistas a meio da montanha perto de Chamonix, com o nariz da câmara encostado às rochas”, continua Hodgson, chamando a atenção para as “perspectivas quase aéreas” da cidade suíça de Friburgo e para as experiências de contra-luz nas fachadas venezianas, que “poderiam ter saído de estudos modernistas da arquitectura dos anos 1930”.

Lembra ainda o crítico do Financial Times que o daguerreótipo não era uma escolha óbvia para alguém como Ruskin – um gentleman teria naturalmente preferido um método menos complexo, trabalhoso e carregado de parafernália -, embora o rigor das imagens, “com uma resolução que ultrapassa a do olho humano”, fosse para ele extremamente atraente. “Ruskin apreciava um olhar preciso acima de tudo e a fotografia fornecia-lhe informação clara e rapidamente condensada.”

No mesmo texto, Francis Hodgson elogia a investigação e o texto produzido pelo casal de coleccionadores e académicos e fala da necessidade de ver estes daguerreótipos expostos ao público. “São antiquados, e pequenos, e feitos por um crítico que as pessoas, embora reconheçam a sua importância, não se dão ao trabalho de ler. Mas são também genialmente emocionantes e trazem-nos algo de muito novo a tudo o que sabemos sobre Ruskin.”

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