Gostas do que vês? Sou eu e tu. Ou não?

Uma série de televisão norte-americana pôs os homossexuais do mundo ocidental a discutir sobre como querem ser vistos. Looking conta as vidas de três homossexuais de 30 anos sem nada de particular que os distinga. Em televisão, a banalidade e a normalidade são palavrões admissíveis ou cedências que negam décadas de personagens à procura da sua definição?

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Os actores Frankie Alvarez, Jonathon Groff e Murray Bartlett protagonistas de Looking David Moir
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Jonathon Groff (Patrick) é designer de videojogos e Frankie Alvarez (Agustin) é artista plástico John P. Johnson
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Frank, interpretado por OT Fagbenie, namora com Agustin David Moir
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Os três amigos Agustin, Patrick e Dom David Moir
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Patrick, interpretado por Jonathon Groff, e Agustin, por Frankie Alvarez John P. Johnson
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Jonathan Groff e Raul Castillo (Ritchie) John P. Johnson
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Patrick e Ritchie são namorados John P. Johnson
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Murray Bartlett e Scott Bakula, que interpreta Lynn Bray Phil
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Russel Tovery, que é Kevin, o patrão de Patrick, e Joseph Williamson, Jon John P. Johnson
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Jonathon Groff e Andrew Law, que interpreta Owen, colega de trabalho de Patrick John P. Johnson
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Frankie Alvarez (Agustin) John P. Johnson
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Os três protagonistas Bray Phil

De que andas à procura?” A pergunta é, ao mesmo tempo, intimidante e clara. E é a pergunta que mais vezes é feita na rede social Grindr, uma aplicação para smartphones que desde 2009 se tornou o meio mais eficaz e mais comum de encontros de cariz sexual entre homossexuais.

Se grindr significa andar à caça, como um predador que ronda as presas e espera que elas dêem um passo em falso — uma frase inocente mas reveladora no perfil, uma fotografia mais exposta, um descritivo breve que indica preferências de idade, que determina a localização, que pode expor gostos sexuais —, looking significa “andar à procura”. Não será, assim, um acaso que Looking seja o nome da série que a HBO lançou há quatro semanas, depois de meses de uma estratégia de marketing sedutora. Precisamente porque potencia um momento-fronteira para a comunidade gay e o modo como é, como gosta, e como se vê representada.

Looking, criada por Michael Lannan e Andrew Haigh segue as vidas, os amores, as expectativas e as errâncias de três gays numa cidade norte-americana que é, ela própria, também protagonista, São Francisco.

Sim, parece um sucedâneo de Sexo e a Cidade, a série que fez mais pela emancipação da mulher comum do que muitos anos de combate feminista (et por cause, foi tão criticada pela academia bem-pensante quanto analisada pelos estudos culturais contemporâneos enquanto hordas de autocarros desciam em Times Square para visitas guiadas à cidade dos Cosmopolitan e dos homens descartáveis).

Mas as vidas de Patrick, Dom e Agustín não podiam existir sem que, há dez anos, alguém tivesse imaginado as vidas de Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte. Hoje, para a mesma cadeia de televisão, os herdeiros directos destas quatro mulheres são aqueles que antes eram apenas os seus amigos gays. Hoje são os gay regular joes (os zé-ninguém gays) a protagonizar uma série que, tal como Sexo e a Cidade, banaliza estereótipos, se diverte com eles e, ainda que podendo perpetuá-los, consegue um outro modo para os inscrever na cultura contemporânea.

Looking aparece no meio de uma discussão sobre a própria ideia de comunidade homossexual e é um dos participantes num debate sobre o poder agregador da televisão para representar essa mesma comunidade.

Sobre Looking já se disse que é um retrocesso num canal de televisão que produziu Sexo e a Cidade — e as suas “filhas”, Girls, de Lena Dunham, onde se fala em sexo anal, se amesquinham os homens, as mulheres não têm pudores sobre o corpo e a linguagem e assumem com orgulho a sua falta de lugar na sociedade competitiva e descorçoada que é Nova Iorque para quem não vive dentro dos círculos de poder —, como também já se disse que é um passo evolutivo e revolucionário.

Looking é, na sua modéstia, um editorial anti-revolucionário. O facto de alguns gays o acharem aborrecido só o torna ainda mais revolucionário.” Palavras de quem viveu os excessos dos anos 1980, ressacou na década de 1990 e abraçou o novo século como o século da reconstrução individual: Bret Easton Ellis, o autor de Psicopata Americano que há dias reagia assim no Twitter.

É preciso olhar para a série sob dois prismas: o da televisão e o do contexto social onde se inscreve. E admitir que a coincidência temporal levanta mais indefinições do que certezas. Em primeiro lugar, é uma série de televisão numa época em que o acesso aos conteúdos televisivos já não se faz exclusivamente na televisão. Em segundo, por força da temática, é-lhe inerente participar no debate sobre os direitos dos homossexuais onde, todos os dias, surgem notícias de repressões, homofobia, impedimentos legislativos e condenações sumárias, já não apenas em regimes autoritários mas em países ocidentais onde se acreditaria que a luta pelos direitos dos homossexuais era uma luta maior por direitos cívicos.

Bryan Lowder, editor da secção LGBT da revista Slate, escreveu um violento artigo na véspera de estreia de Looking dizendo que “se encontrássemos o perfil de Looking no Grindr, iríamos querer falar com ele. Mas após um ‘Olá :)’ e uma quantas respostas aborrecidas e estafadas, chegaríamos à conclusão de que este tipo, ainda que esteticamente e superficialmente atraente, era tão interessante como um vídeo pornográfico que víramos na noite anterior”.

O artigo deste jornalista americano suscitou respostas extremadas e ele próprio iniciou um debate online com Emily Nussbaum que, na mesma altura, havia escrito o oposto na New Yorker: “Alguns críticos irão, certamente, defender que a série é insuficientemente transgressiva, ou ‘trivial’, essa palavra de código frequentemente usada para definir história de amor e romance. Mas Looking é um acontecimento dissimulado, sobretudo porque trata um grupo específico de homens gay com afecto e de modo lúdico, observando as suas conquistas como comuns e não extraordinárias.”

Se é verdade que os últimos anos foram ricos em personagens gay na televisão, não o é menos que raramente abandonaram o lugar de melhor amigo, de comic relief ou de perpetuador de estereótipos. Até mesmo algumas séries que aparentemente se atreviam a arriscar mais na redefinição da presença de personagens gay, fossem protagonistas ou não — comédias em particular — , ou a sua presença na série foi desaparecendo ou as próprias séries foram simplesmente canceladas. A excepção é Modern Family (Uma Família Muito Moderna, que a TVI exibe), onde um casal gay adopta uma criança asiática e vive plenamente integrado na sua disfuncional e enorme família.

Mas outros, como Max, de Happy Endings (ABC), o gordo e desleixado que não deixava transparecer que era gay em gesto nenhum, a não ser quando um amigo lhe falava disso (e ficava demasiado próximo do estereótipo americano de couch potato), foi perdendo a sua força. Ao longo de duas temporadas, Max nunca teve um envolvimento que durasse mais do que a graça que se podia fazer com o seu (mais um) falhanço.

The New Normal (NBC) arriscou ao dar visibilidade a modelos familiares já existentes mas nunca expostos em televisão: colocou um casal a conviver com a barriga de aluguer e integrou toda a homofobia e comentário social na personagem da sogra, de direita conservadora e reaccionária. A série foi cancelada no fim da primeira temporada, sem que o bebé chegasse a nascer. Cancelada foi também Sean saves the world (NBC), onde Sean Hayes — o Jack de Will & Grace que foi exibida entre 1998 e 2006 e é agora uma série de culto — era o protagonista pai de família a braços com uma filha adolescente. Mas o mesmo Sean que punha o público mainstream a rir ao “adoçar” a presença dos gays no prime-time porque mostrava personagens na casa dos 30 que não se definiam pela sua sexualidade e se divertiam a brincar com os estereótipos que as definiam, oito anos depois teve dificuldades em salvar a sua própria série. O que fez com que se levantasse a questão: “Os gays deixaram de ser divertidos?”

“Os últimos 15 anos de televisão foram amplamente influenciados pela cultura gay, mas isso não era necessariamente perceptível”, explica a crítica de televisão da revista New Yorker, Emily Nussbaum. E chama a atenção para os autores, todos eles gays, de séries como Sexo e a Cidade (Michael Patrick King), Betty Feia (Silvio Horta), Sete Palmos de Terra e True Blood (ambas de Alan Ball), Glee e American Horror Story (de Ryan Murphy, o mesmo de The New Normal e do homoerótico Nip/Tuck).

“Dificilmente estes homens se assemelhavam, mas partilhavam uma agressividade teatral e uma predilecção para estruturas místicas, algo que só séries efectivamente mais arriscadas, como Oz (passada numa prisão onde a narrativa principal era interpretada por dois homens com uma ligação homossexual tão perversa que parecia praticamente impossível) e Queer as Folk haviam conseguido.” Isto a par, lembra ainda Nussbaum, do advento dos “reality shows como The Real World, Queer Eye for the Straight Guy (que chegou a ter uma versão portuguesa, Esquadrão G), Project Runway e Real Housewises, todas assinadas por Andy Cohen, o bufão do canal Bravo”. Looking é, como diríamos se traduzíssemos para a expressão popular que Nussbaum refere no seu artigo — “a whole different ball of wax” —, “outra louça”. É?

Nicolas Maille, crítico de cinema e responsável de comunicação da PINK TV, o canal online francês inteiramente dedicado à comunidade gay explica-nos que a herança de Looking está mais atrás, em séries como Queer as Folk (com duas versões, a original, inglesa, situada em Manchester, a americana, em Pittsburgh, subúrbios emocionais da Inglaterra liberal e da América activista), e The L World (A Letra L, que passou em Portugal), uma vez que “pela primeira vez as personagens gay não são secundárias”.

“Essas séries dialogavam com o seu próprio tempo — Queer as Folk foi produzida em Inglaterra entre 1999 e 2000, depois nos EUA, entre 2000 e 2005; The L World entre 2004 e 2009. E criavam os seus próprios modelos a partir de estereótipos — no Queer as Folk, por exemplo, Brian, o ‘giraço’, Justin, o adolescente, Emmet, o drama queen, Michael, o gay lambda [aquele com quem nos identificamos mais facilmente], etc… —, ao mesmo tempo que procuravam integrar uma certa verosimilhança com o que eram as representações quotidianas e as problemáticas genéricas dos homossexuais”.

Séries como Looking ou o filme Weekend, também realizado por Andrew Haigh são, dez anos depois de Queer as Folk, “espelho das evoluções em matéria de direitos e visibilidade gay e do salto que se deu que permite admitir que o estereótipo já não é suficiente e, sobretudo, que se a representação da homossexualidade continua a ser fundamental para a composição das personagens, não o é tanto para a narrativa ou se apresenta como uma problemática em si mesma”, remata Nicolas Maille.

A revista norte-americana Out, na sua edição de Janeiro, dizia precisamente isso: “Looking não se sustenta no efeito visual espirituoso, na roupa excessiva ou na efabulação para construir a sua narrativa. Sustenta-se na alegria do reconhecimento que se produz a partir de uma bem calibrada representação da vida quotidiana.”

Como diria Harvey Fierstein, a mamma queen de Torch Song Trilogy, o filme-farol do activismo em tempos de sida, muito antes da estetização de Anjos na América (2003, HBO) ou das fag-hags de Sexo e a Cidade, “quando os gays forem aceites, as drag queen deixarão de ter lugar”. “É realmente assim”, diz Nicolas Maille, “mas não podemos esquecer que sem as drag queens nunca teríamos tido Stonewall [o movimento de revolta social que em 1969, em Nova Iorque, marcou o início da luta activista homossexual]”. Anos de militantismo depois, continua Maille, o homem gay procurou a sua afirmação e o ponto ao qual chegou é aquilo que o director de comunicação da PINK TV identifica como gay hipster. Ou seja, “alguém que repensa a sua masculinidade tal como os heterossexuais o fazem”.

Mas como chegámos aqui, ao momento em que é a própria comunidade gay a reagir de forma negativa à normalização da sua representação como acontece em Looking, uma série que significaria, do ponto de vista narrativo, um sinal de maturidade?

A Revista 2 convidou três homossexuais, na casa dos 30 anos, para assistir em streaming aos dois primeiros episódios e o entusiasmo foi mitigado.

Luís Royal, 39 anos, designer, foi o primeiro a reagir, acusando a série de “aborrecida”. “Não preciso que uma série seja gay para entrar na intimidade das personagens. Mas espero que, sendo gay, me divirta e me exponha a práticas de prazer imediato, características típicas que identificam os homossexuais, e que são coisas das quais tiro partido quando estou com os meus amigos.” A atitude de Royal é coincidente com a da maioria dos comentadores e críticos de televisão norte-americanos que, sendo gays, se questionaram sobre a ponte entre Looking e séries que lhe são anteriores.

Rich Juzwiack, 35 anos, jornalista, gay, a viver em São Francisco é alguém que está muito irritado com Looking. O que o incomoda na série é “a normalização de uma ideia de ser gay que não existe”, diz à Revista 2. No artigo que publicou no site Gawker, Juzwiack citou o escritor e académico Richard Dyer, que no documentário The Celluloid Closet (filme que traça a história de 100 anos de representação gay no cinema) falava da importância do cinema e da televisão na constituição de referentes individuais e colectivos. “O que se constitui como ideia sobre o que é não surge apenas a partir de ti, mas também da cultura onde te inseres e, nessa cultura, muito em particular, do cinema. Aprendemos com os filmes, e através deles, o que significa ser um homem e uma mulher e o que significa ter uma sexualidade.”

Juzwiack diz que Looking presta um mau serviço ao processo de emancipação “por jogar, com personagens gay, o jogo do pudor hetero”. “Há anos que sou bombardeado com modelos heterossexuais e não gostaria que a televisão atingisse algum tipo de maturidade na representação dos homossexuais a partir da antecipação da reacção heterossexual.”

Juzwiack não está sozinho nesta abordagem. Mas André Murraças, 37 anos, argumentista e encenador, que prepara a primeira webseries portuguesa de temática gay, Barba Rija, classifica Looking como “romântica, menos agressiva e até nostálgica”. Murraças fala de um outro tempo narrativo e de uma outra forma de desenhar as personagens para um contexto que se alterou. “É uma escolha”, afirma. Mas uma escolha que, se não pede personagens estereotipadas, como admite João Gaspar, 34 anos, produtor cultural e ex-candidato à presidência da Câmara Municipal da Moita, “deveria criar personagens com as quais fosse possível identificar-nos”.

O que sucede com Looking, admite-se, é que a sua normalidade é tal que corre o risco de desaparecer.

É um problema de integração que coloca em causa a própria ideia de comunidade? Os convidados da Revista 2 admitem que a série possa ambicionar dirigir-se a um público mais alargado porque, como diz Luís Royal, “a própria ideia de comunidade se alterou”. Mas, se assim for, qual a importância de uma série como esta quando há anos os gays aprenderam a fazer um trabalho de conversão de referências hetero na suas próprias referências?

Para Bryan Lowder, a expectativa que rodeou Looking de que seria uma “série normal” foi confirmada. Mas para pior: Looking é ainda mais “normal” do que a “normalidade”. Este jornalista escrevia na Slate que “estamos tão desesperados por imagens reais de nós mesmos que [por maioria de razão] Looking promete ser o lugar onde as vamos encontrar”. E, por isso, “é quase insuportável o quão aborrecido Looking é”.

Em entrevista à Revista 2, Lowder reconhece os dois lados de uma mesma questão: como abordar a diversidade que compõe a comunidade gay (como qualquer comunidade), sendo atenta à sua especificidade? “Por mais que o movimento gay queira confundir-se com, e assimilar, comportamentos da sociedade heterossexual, os gays são simplesmente diferentes de todas as formas possíveis. É ao explorar essas diferenças que os projectos de televisão se tornam interessantes. Infelizmente, as personagens em Looking não são nem diferentes nem particularmente relevantes, daí a série ser aborrecida.”

Por outro lado, reconhece, a série surge num momento em que culturalmente há a sensação de se ter dado um passo em frente na representação de homens gay na realidade mainstream. “Os homens são já versões modernas de representações anteriores. E, no entanto, não consigo deixar de sentir que a visão que dá da história e da cultura gay (mesmo que não exista ‘uma história’) é retrógrada. Ao tentar ser progressiva e pós-gay, ignora muito da realidade na qual vivem os gays, como a homofobia e o VIH/Sida. Não é que a série tenha de ser sobre isso mas a sua ausência neutraliza-a. Do mesmo modo, a representação do sexo é um passo atrás em relação ao que já havia sido proposto no Queer as Folk.”

Para quem tinha 20 anos na década de 1990, lembra João Gaspar, o impacto de uma série como Queer as Folk era tal que permitia imaginar que seria possível ter amigos assim. Ou seja, deixava um homem que se estivesse a descobrir como homossexual menos sozinho. Mas hoje, acrescenta Nicolas Maille, só quando a homossexualidade deixa de ser tema é que a discussão sobre a sua representação surge: “Se é fácil encontrar temas comuns (o sair do armário, a aceitação) em Looking, chegámos a um tal nível de maturação social que é o quotidiano que importa. As situações ganham uma universalidade que tanto pode apelar a um público hetero como homossexual. Mesmo sem falar de banalização ou normalização — não gosto destes termos —, a representação dos homossexuais perde toda a sua marginalidade.” O responsável de comunicação da PINK TV privilegia o “esbatimento de uma estética um pouco mais underground (como a dos primeiros filmes de Almodóvar, o universo negro de Patrice Chéreau ou o ambiente trash de uma série como Metrosexuality) face a uma estética mais vulgar”.

A questão que é preciso colocar é se séries como Looking podem, efectivamente, federar um público mais alargado. Mas caberão os gays, a quem se dirigiria a série, nesse espaço alargado?

Texto publicado na Revista 2, edição de 9 de Fevereiro de 2014

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