Géneros e feitios

A chamada “ideologia de género” é também aferida pela linguagem usada.

Pela pena de Miguel Esteves Cardoso (MEC) relançou-se um curioso debate sobre o uso da expressão “portugueses e portuguesas” como alguns políticos gostam de dizer em vez de apenas “portugueses”.

No seu texto, MEC escreve: “Como somos todos portugueses quando alguém fala em ‘portugueses e portuguesas’ está a falar duas vezes das mulheres portuguesas. As mulheres estão obviamente incluídas nos portugueses. Mas, ao falar singularmente das portuguesas, está-se propositadamente a excluir os homens, como se as mulheres fossem portugueses de primeiro (ou de segundo, tanto faz) grau”.

Depois, pude ler interessantes dissertações críticas do texto de MEC. Uma delas é-nos dada por Edite Estrela: “A história da língua portuguesa pode ajudar a perceber a prevalência das desinências masculinas sobre as femininas. O português foi-se transformando a partir do latim vulgar, que possuía os géneros masculino, feminino e neutro. Os idiomas vindos do latim suprimiram o género neutro, considerando que o género masculino cumpria essa função. Por isso, as línguas latinas como o português, o francês e o italiano dão relevância às desinências masculinas sobre as femininas”.

O certo é que a chamada “ideologia de género” é também aferida pela linguagem usada. E, vai daí, qualquer desvio a esta linguagem tão extremosamente politicamente correcta é logo criticado com veemência e mesmo exasperação.

Não está em causa a desinência de género para profissões que, antes, eram quase exclusivas de homens. Por exemplo, juíza, ministra, pilota, capitã.

Contudo, confesso que também não gosto de “portugueses e portuguesas”. Não que a questão em si tenha uma grande importância, evidentemente. “Portugueses” é, gramaticalmente, um substantivo comum de dois, ou seja tem dois valores de género (masculino e feminino). No conjunto “portugueses” estão incluídos os portugueses (homens) e as portuguesas, pelo que estas são um subconjunto dos “portugueses”. Uma trapalhada matemática se vista em termos da teoria de conjuntos. E se levamos esta medida a outros substantivos (sobretudo colectivos), nunca mais paramos. Por exemplo:

- “Humanos e humanas” em vez de dizermos tão-só “humanos”;

- “Loja do cidadão e da cidadã” para eliminar a “redutora” loja do cidadão, não vá alguém interpretá-la à letra do género;

- “Conselho de Ministros e Ministras” para não se pensar que no “Conselho de Ministros” não há ministras;

- “Ordem dos advogados e advogadas” (o mesmo com outras ordens), agora que a bastonária é uma advogada;

- “Junta de médicos e médicas

- “Câmara de deputados e deputadas

E para que não se julgue que a regra do colectivo se forma sempre através do plural do género masculino, há um curioso caso no âmbito familiar: “pais” (plural do masculino pai) e “avós” (plural do feminino avó). Será que numa reunião de pais, deveremos dizer “pais e mães” em vez de apenas “pais” para não sermos acusados de machismo, mas num encontro de avós já não teremos que enunciar “avós e avôs”? E que dizer de um pai ou uma mãe com filhos rapazes e raparigas quando os chama solenemente? Será conveniente educá-los chamando-os “filhos e filhas” em vez de “meus filhos”, sob pena de traumas infantis?

Voltando aos “portugueses e portuguesas” por que não apareceu ainda e ao invés, a exigência de “portuguesas e portugueses” numa quota não inferior a 50% das situações para que assim a reclamada igualdade seja absoluta?

Vida facilitada têm alguns gentílicos, que não o nosso. É o caso dos belgas (não imagino na Bélgica um político a dizer “belgas e belgas”), timorenses, são-tomenses, guineenses, croatas, vietnamitas.

Em jeito de caricatura, será que qualquer dia começa a revolta contra certos substantivos chamados sobrecomuns, ou seja aqueles que não admitem duas formas de género? Será que os homens prefeririam ”o testemunha”, “o criança”, “o pessoa” (que não Fernando), “o criatura”, “o vítima” e as mulheres escolheriam “a individuo”, “a ser humana”, “a anjo”, “a cônjuge”?

E se esta obsessão se viesse a alargar ao mundo animal, onde muitos são chamados por um nome epiceno, ou seja de só um género gramatical para animais de ambos os sexos? Teríamos a foca (mas também o “foco”), o ouriço (e a “ouriça”), a cigarra (e o “cigarro”). Mesmo nos animais designados por substantivos comuns de dois (tal como “portugueses”) e numa perspectiva ecológica e politicamente correcta, teremos que dizer “gatos e gatas” em vez de só “gatos”, “ratos e ratas” em vez de apenas “ratos”, “burros e burras (ou jumentas) ” substituindo “burros”, “javalis e javalinas” no lugar de “javalis”?

Por fim uma alusão de género, em tons religiosos. Se Deus é gramaticalmente masculino, o diabo é que este mesmo diabo - ainda que chamado de demónio, belzebu, satanás, satã, lúcifer, maligno, mafarrico - também o é.

Economista, ex-ministro das Finanças

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