Bruscamente, numa casa em Ramallah

Silva Melo deve ficar vaidoso é com as interpretações de Américo Silva como Papá Pollit na Gata em Telhado de Zinco Quente e de António Simão como Pai em A Casa de Ramallah.

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Jorge Silva Melo é um encenador feliz. Na iminência de ter de sair do Teatro da Politécnica com os seus Artistas Unidos por razões que não vêm agora ao caso, é obrigado pelo sucesso de público a prolongar a carreira de uma peça preciosa sobre um casal de palestinianos errantes, peça que é também sobre países como Portugal e Itália quando vistos do lado de fora da abundância. O assunto bate certo com a circunstância que o grupo vive. E a proximidade com que o autor trata o tema é tal que o espectador não pode deixar de se sentir parte do conflito.

Ao mesmo tempo, no Centro Cultural de Belém, estreia  com brilho mediático e prepara-se para correr o país uma das mais famosas peças do século XX, merecidamente adorada por muitos, que trata da ganância e da traição num país distante no tempo e no espaço, mas que se revela afinal muito próximo de nós. Num CCB, símbolo da nação, sem rumo definido, esta peça diz muito. E o reconhecimento dos espectadores nos dramas das personagens de Tennessee Williams, se não é imediato, é irresistível.

A casa com vista para o mar e as linhas ferroviárias da Palestina são fictícias, como o sul dos EUA é imaginário. Mas estes dois espectáculos revelam bem como se faz teatro e como se vive no nosso tempo. Isto seria mais que suficiente para dar os parabéns ao encenador, dramaturgo, actor, editor, cineasta e crítico. Mas Silva Melo deve ficar vaidoso é com as interpretações de Américo Silva como Papá Pollit na Gata em Telhado de Zinco Quente e de António Simão como Pai em A Casa de Ramallah.

Dois dos mais antigos membros dos Artistas Unidos, estes actores, certamente escolhidos a dedo, apropriam-se do texto com unhas e dentes, criando personagens apaixonantes, cujos defeitos de carácter nos seduzem tanto quanto as qualidades. Personagens e carácter são ideias fora de moda, é certo, mas que nos permitem imaginar o que Williams e Tarantino imaginaram.

Os dois actores dizem o texto manipulando com total à vontade a oralidade e o pensamento de modo a conseguirem exprimir quem são e o que querem as figuras que os dramaturgos puseram no papel, fala a fala. Mais do que isso, expurgam do texto qualquer nota de sentimentalismo ou vitimização que pudessem ter a tentação de tocar, dando lugar à ironia e ao sentido de humor, sem cair no cinismo nem na descrença. E olhe que são, caro leitor, personagens à beira do fim. Ao invés de se lamentarem, os actores criaram personagens que se riem do destino, e pisam o palco prontos a lutar.

O segundo acto de Gata em Telhado de Zinco Quente, em que pai e filho se confrontam e confessam um ao outro, vale toda a peça. As personagens vão medindo forças, até optarem pela franqueza, resgatando a sua humanidade com esse gesto. A toponímia palestiniana, por onde passa o inter-regional de A Casa de Ramallah, enumerada e apropriada como se fizesse parte da Linha da Beira Alta, faz-nos crer que talvez vivamos também nos territórios ocupados.

Nídia Roque e Andreia Bento são certeiras como filha e mãe na peça de Antonio Tarantino. Na Gata, Rúben Gomes é impecável como Brick, limitado pelo desgosto, pelo alcoolismo e por um pé engessado, frente a um Papá Pollit que, tendo recebido o resultado das últimas análises, e ao pensar que está a salvo de um cancro, é como se adquirisse licença para ser desbocado. As personagens secundárias compõem um grupo farsesco, motivado por apetites egoístas, que revelam a tragédia de Brick e da esposa, Maggie. Aliás, que é feito de “Maggie, the cat”? A personagem que dá início à acção da peça e título à obra, interpretada por Catarina Wallenstein, espalha a sua graça pelo palco e brilha, mas com uma luz fria, não tanto como se queria, cedendo aqui a uma afectação e ali a uma pena de si própria que não se vê bem como possa dar conta da cena. Enquanto isso não mudar, a metáfora do título aplica-se mais às duas principais personagens masculinas que outra coisa.

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