Fúria não é campo de batalha

Faz sentido recordar o Film is like a battleground de Fuller, porque Fúria é sobre a II Guerra, mas não é um filme em estado de guerra.

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Coincidência a aproveitar: a estreia de Fúria, de David Ayer – Brad Pitt e os seus homens nos últimos e brutais dias da Segunda Guerra –, a fazer-se no momento em que o DocLisboa, numa secção dedicada à História do século XX, exibiu documentos sobre o conflito, como o documentário Falkenau, The Impossible (1988), de Emil Weiss, em que o realizador Samuel Fuller contava a sua experiência como soldado na libertação de um campo de extermínio nazi numa aldeia checa. Fuller contava e nesse fabuloso filme era incorporado material que o próprio filmou quando os aliados chegaram a Falkenau. A Segunda Guerra foi a experiência da sua vida. Está por trás de todo o seu cinema, formou a sua moral – a súmula no final de O Sargento da Força Um/The Big Red One (1980), um dos grandes filmes de guerra americanos: “Surviving is the only glory in war, if you know what I mean”.

Não se pode, por isso, impedir a invasão de O Sargento da Força Um e de Fuller ao ver Fúria – título fulleriano, de punho fechado, aliás. Travelogue, seguindo os actos e feitos de uma unidade de combate por palcos do conflito, ficam connosco os olhares das personagens, a que Fuller regressa sempre no final de cada “episódio” – para além de ser filme de memórias e até de auto-retrato, O Sargento da Força Um é uma (delicada) história sobre o que aqueles olhos viram, sobre a perda de inocência e a dúvida, e isso sobrepõe-se a qualquer fixação do código do “filme de guerra”.

Quando em Falkenau, the Impossible o cineasta dizia que o encontro entre a ficção e precipício humano que se abriu com a Guerra era, para ele, urgente e veemente mas não tinha fórmulas sobre como o fazer, e quando no Pierrot le Fou (1965) Godard o pôs a dizer Film is like a Battleground, colocava assim o cinema num território de conflito (havendo guerra ou não), à procura de uma forma. O instinto, no seu cinema, gritava em letras garrafais. Mas esse era apenas o princípio da turbulência.

O que se passa em Fúria é o oposto: é um percurso sem acidentes por formas convencionadas, estabilizadas, já imobilizadas, sem procura, sem dúvidas. Quer dizer: há cenas de guerra, mas não há nada que mostre a ficção a lutar pela vida, o cinema num battleground. É um arquivo de cenas de género que são passadas em revista, e o melhor que David Ayer faz é mostrar que se preparou para o exercício, mas sem grande distinção. Até o esforçado laconismo de Brad Pitt faz figura de remake, versão “séria” do Aldo Raine do Sacanas sem Lei (2009) de Tarantino. 

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