“Fui um homem ou fui um idiota?”

Na vida de Saul Bellow a escrita veio sempre antes de tudo. Mas na hora da morte a preocupação foi com a sua humanidade. Teria sido capaz? Uma nova biografia do escritor que este mês completaria cem anos segue a ideia da arte enquanto meio de superar a vida e das questões morais que tal opção coloca

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Saul Bellow procurava o que procurou sempre com a literatura: o seu eu mais íntimo através de um processo de trabalho mimético sobre a realidade BETTMANN/ CORBIS

Pouco antes de morrer, Saul Bellow perguntou ao seu grande amigo Eugene Goodhead: “Fui um homem ou fui um idiota?”

Estava a dois meses de fazer 90 anos. Era o escritor norte-americano com o maior palmarés de sempre, ganhou o Nobel, venceu três vezes o National Book Award, uma vez o Pulitzer, foi distinguido com a medalha de ouro da Academia Americana de Artes e Letras, mas na hora da morte revelava a insegurança que o ia assolando ao longo da vida. Tinha uma dúvida de carácter e, para Bellow, era o carácter que definia o destino, se tomarmos por verdade fora da ficção o primeiro parágrafo de As Aventuras de Augie March (Quetzal, 2010), o seu romance libertador, aquele onde aos 34 anos descobriu que a linguagem não era uma amarra, mas nela estava antes a libertação do escritor. “Ao tornar-me escritor eu esperava revelar, de algum modo, as minhas reacções singulares acerca da existência. Para quê escrever a não ser para isso?”, contara a Philip Roth, já aos 85 anos, numa espécie de entrevista que nunca ficaria terminada. Com Augie March, essa singularidade começava a manifestar-se e começava assim, na voz de Augie, o rapaz que, como Bellow, cresceu em Chicago durante a Depressão: “Sou americano, nascido em Chicago — Chicago, aquela cidade sombria —, e encaro as coisas da maneira que aprendi a fazer sozinho, em estilo livre. Vou, portanto, fazer o relato à minha maneira: o que bater primeiro, é o primeiro a entrar; às vezes uma pancada inocente, outras nem tanto. Mas o carácter de um homem é o seu destino, diz Heraclito, e no fundo não há forma de disfarçar a natureza das pancadas, nem fazendo um tratamento acústico na porta nem cobrindo os nós dos dedos com uma luva.”

Quando, já no fim de tudo, perguntava se fora um homem ou um idiota, procurava o que procurou sempre com a literatura: o seu eu mais íntimo através de um processo de trabalho mimético sobre a realidade. Ela dá-lhe os factos que a imaginação se encarrega de manipular. É essa ponta do fio que Zachary Leader (n.1949) persegue naquela que é a mais ambiciosa biografia de Saul Bellow, construída justamente a partir dessa pergunta terminal: “Fui um homem ou fui um idiota?”

Ser mensch
O primeiro volume, The Life of Saul Bellow: To Fame and Fortune, 1915-1964 (Alfred A. Knopf), saiu em Maio e, como quase sempre acontece com tudo o que envolve Bellow, está a provocar reacções apaixonadas. O livro companha o escritor desde o nascimento até à publicação de Herzog, o romance que lhe deu fama e fortuna e confirmou que ele podia mesmo viver da escrita. Na introdução ao livro com 832 páginas — das quais quase 200 são notas —, Leader esclarece que Bellow quando, naquela frase, diz “homem” quer no fundo dizer mensch, palavra alemã para designar “ser humano”, alguém “admirável, responsável, uma pessoa de carácter; ser mensch não tem nada a ver com sucesso, estatuto ou riqueza”, continua o biógrafo numa passagem onde revela também a origem do “idiota” a que se refere Bellow. Veio do pai. “Ele sempre achou que eu era um idiota.” Essas origens, a do filho mais novo de um imigrante russo judeu que teve de fugir para a América depois de ter sido preso no seu país, serão determinantes na criação do universo literário que Saul, nascido Solomon, haveria de construir. Mas “o que interessava no fim (…) era a vida que tinha vivido enquanto homem”, conclui Zachary Leader.

É uma inquietação que complica ainda mais a resposta a outra pergunta — “quem é Bellow?” —, mas ao decidir começar por ela, Zachary Leader manifesta tanto a ambição de tentar chegar o mais perto possível da resposta quanto justificar um hipotético fracasso nessa tarefa. Se no fim nem Bellow soube quem era… Numa crítica a The Life of Saul Bellow, publicada na revista Atlantic de Maio, a jornalista Judith Shulevitz afirma que escrever uma biografia sobre Bellow é uma tarefa condenada ao fracasso e Leader chumbou no exame por razões óbvias: não é possível rivalizar com Bellow na escrita sobre Bellow. Além disso, ele evadia-se nas tentativas. Em 1981, o escritor Mark Harris (1922-2007) falava dessa dificuldade ao contar como fora impossível conquistar a confiança do autor de Herzog depois de quatro anos a escrever-lhe cartas e a ser quase ignorado. Essa obsessão e a perseguição ao “Rei Bellow” — como lhe chamava —, resultou no livro Saul Bellow, Drumlin Woodchuck, espécie de memória de um fiasco. Leader relata o facto, a par de outras tentativas de outros potenciais biógrafos para conseguir tirar de Bellow a sua essência. Todos soçobraram até que em 2000 James Atlas (n.1949) assina a primeira grande biografia do homem que vencera o Nobel em 1976. Bellow, a Biography (Faber) foi publicada ainda em vida do escritor e traçava-lhe um perfil implacável, o de alguém que sacrificou tudo à ficção, mulherengo — teve cinco casamentos, muitas paixões, ainda mais casos —, com poucos escrúpulos, que usava os mais próximos sem restrições na sua ficção. Na altura, o crítico James Wood escreveu no The New Republic que o livro de Atlas não era uma biografia sobre uma mente que cultiva e pratica a liberdade, a imaginação, mas sobre “um sedutor, um mau marido", um "fazedor de dinheiro que também acontece fazer bons livros”. E sobre a questão moral que Atlas levantava, de Bellow utilizar as pessoas mais próximas nos romances, Wood reconhecia-lhe esse “estranho mas inegável utilitarismo”, mas concedia-lhe também uma bizarra atenuante: “o número de pessoas atingidas por Bellow talvez não totalize os dedos das duas mãos, e com isso ele encantou, consolou e alterou as vidas de milhares de leitores”.

Leader recupera esta citação de James Wood na introdução do primeiro volume da sua biografia para sublinhar a divergência de opiniões “quanto à moralidade deste cálculo” — expressão de Wood. “Sobre a moralidade ou não moralidade de tudo isso, tentei ser neutro, mas faço uma pergunta que pode ser a de um leitor apaixonado que desculpa tudo, e se uma dessas pessoas for a mãe do nosso filho, ou o pai, ou alguém a quem amamos? Será certamente outra questão. Não haverá grande perigo em admirar o que pode ser sacrificado a favor de um grande romance, mas no caso de Bellow isso é uma missão”, declarou Leader numa conversa quase íntima, a três, que decorreu numa livraria de Manhattan no final de Maio. Além de Zachary Leader, estavam o escritor Martin Amis, amigo e leitor de Bellow, e Benjamin Taylor, editor de Letters (com as cartas inéditas de Bellow, publicado em 2010) e que acaba de juntar num volume — Saul Bellow, There is Simple to Much to Think About (Alfred A. Knopf) — os textos de não ficção do escritor, depurando e ampliando uma compilação que o próprio Bellow organizou em 1994 com o título It All Adds Up. Entre esses textos organizados agora por Taylor está a tal espécie de entrevista que Bellow deu a Philip Roth, onde conta de que forma Augie March representou o sucesso de uma estratégia inconsciente. Está também um texto que Taylor escolheu para introdução, onde o escritor vai às origens das suas motivações literárias, e que constitui um bom tópico para avançar para a leitura da biografia de Zachary Leader:

“O que foi, nos anos trinta, que arrastou um adolescente em Chicago para a escrita de livros? Como é que um jovem americano no período da Depressão decidiu que era, acima de tudo, um artista literário? Uso o termo pretensioso artista literário simplesmente para enfatizar o contraste entre tal ambição e os factos exteriores”, escreve num texto de 1978, Starting Out in Chicago, que é quase um manifesto. “… qual era a mais impraticável das escolhas numa Chicago sombria, pesada, ruidosa, ignorante? Porque foi para ser o representante da beleza, o intérprete do coração humano, o herói da ingenuidade, da alegria, da liberdade pessoal, da generosidade e do amor. Não posso dizer, mesmo agora, que isto tenha sido algo excêntrico para se ser.” A citação (numa tradução muito imediata) põe-nos perante o Bellow original, aquele que usou o meio onde cresceu e os que nele habitam, para se distinguir. Quem leu Herzog, o romance que resultou do divórcio da segunda mulher, Sondra, retratada na traidora Madeleine — uma das personagens mais marcantes entre as muitas que Bellow construiu —, está perante um dos melhores exemplos dessa escrita interior e da paisagem que a envolve, onde se destaca uma vez mais Chicago, cidade descrita de forma tragicamente melancólica. Mas é sobretudo exemplar da capacidade de Bellow pegar numa personagem real e fixá-la na ficção com os recursos da sua prosa. “A escrita de Bellow é tão rica em prazeres miméticos que quando ele cria uma personagem que se assemelha a uma pessoa identificável, a tentação é acreditar  que aquela personagem é a pessoa perfeitamente captada”, sublinha Zachary que destaca estes traços e os contextualiza e tenta justificar quinze anos depois da biografia de Atlas, no centenário do nascimento e nos dez anos da morte de Saul Bellow.

As opções do biógrafo
O biógrafo tenta não fazer juízos e na sua abordagem a Bellow o seu grande trunfo é o detalhe e a leitura cruzada que faz da vida e da literatura que Saul Bellow produziu. É outro risco: o de querer aprender sobre a verdade do homem, ou da vida, através do trabalho do escritor, ou seja, da escrita que ele deixou. É a isso que chamam “falácia biográfica”, mas será inevitável perseguir segundo Leader. “Talvez esse acto — o de ler o homem na sua escrita — seja um lugar comum, mas os biógrafos literários fazem isto e muitas vezes são criticados por isso. No caso de Saul Bellow essa é uma tarefa ainda mais muito complicada”, refere Leader perante uma audiência de poucas dezenas de pessoas que quer ouvir falar do que há de novo a dizer sobre Bellow e que, menos do que factos, esperava partilhas. Martin Amis percebeu isso e, meio irónico, começou por dizer: “não trago muito a não ser coisas de enorme interesse humano”. Dos três escritores presentes na sala, ele foi quem mais privou com Bellow e tem aplaudido a biografia de Zachary Leader. Não é isento. Na Vanity Fair considerou Leader respeitoso, mas nada intimidado, equilibrado mas nunca anódino e a sua crítica literária, como a sua prosa, é estilisticamente infalível e aguda”.

Amis não será isento na sua avaliação, como assumiu nessa conversa. Leader foi o biógrafo do seu pai, o escritor britânico Kingsley Amis — The Life of Kingsley Amis, (2006) — , e torna-se agora biógrafo daquele que Amis considera o maior escritor americano de sempre, que aconteceu ser também seu amigo nos últimos vinte anos de vida. A diferença e talvez a vantagem de Leader em relação aos outros, e sobretudo a Atlas, que conversou várias vezes com Bellow na recolha de material biográfico, é que Leader não conheceu pessoalmente o biografado. Ou mal conheceu. Ele publica a biografia passados dez anos da morte do escritor. Começou a trabalhar nela em 2007. Nunca ouviu Bellow para o livro, encontrou-o apenas uma vez, na década de 70, era ele um estudante de inglês, fã da escrita de Bellow que nessa altura tinha acabado de publicar O Planeta do Sr. Sammler. “Não me lembro de nada do que ele disse”, conta, mas lembra os detalhes de todo o ambiente da conversa. Para este trabalho, além de ter beneficiado de todos os trabalhos sobre Bellow que o antecederam, a viúva, Janis, quinta mulher de Bellow, deu-lhe acesso ao arquivo do escritor. O livro que agora sai é uma pormenorizada história, menos apaixonada do que qualquer outra que se publicou, contada a partir da perspectiva de alguém que se construiu com a ficção que foi escrevendo, que desde muito cedo quis ser ficcionista, que fez dessa a sua missão na vida, para no fim se questionar acerca do modo como viveu fora dessa ficção. “

Neste primeiro volume da biografia, Zachary Leader começa pelas origens que descreve ao detalhe, num retrato vivo e carregado de informação, sublinhando as dificuldades económicas, a relação entre os pais e as mudanças do explosivo Abraham e da doce Liza Bellow, primeiro da Rússia (S. Petersburgo) para uma pequena cidade do Canadá (Lachine), onde Saul nasceu a 10 de Junho de 1915; depois para Chicago, quando ele tinha nove anos e procurava construir a sua identidade entre americanos e outros filhos de imigrantes judeus da Europa. Várias vezes se refere àquela cidade como uma Babel, sobretudo em Augie March. É lá, que entre a escassez da vida familiar, as sovas do pai — um judeu menos ortodoxo do que a mãe, e com uma “vocação para o fracasso”, falhado em vários negócios mas um leitor com muitos livros nas estantes — e o sentimento de não pertença, que Bellow se constrói, no gueto, obcecado em aprender as regras do inglês para poder ser aceite num meio que lhe era hostil.

Na literatura podia suplantar-se e essa seria a sua marca. Por tudo isso, nunca se livrou dessa infância; ela ficaria colada para sempre e iria determinar caminhos, “o seu sentido do mundo” povoado por personagens “maiores do que a vida”, segundo expressões de Leader. E é através dessas personagens roubadas ao real que Bellow melhor se revela. A família os vizinhos, as namoradas, as mulheres- Era “um observador com muita imaginação”, continua Leader na conversa sobre Bellow e na opção por um livro muito longo que se dividiu em dois livros longos. O segundo está na fase de escrita e a reacção ao primeiro está a ser útil, diz o biógrafo.

A conversa naquela livraria do Soho acontece menos de um mês após o lançamento da biografia, mas Zachary Leader já leu as críticas suficientes para confirmar o que sabia: mexer com Bellow é mexer com paixões, e mesmo que escolha falar dele forma desapaixonada, optando por estilo o mais neutro que conseguiu, o seu livro é um alvo fácil, ainda que a maioria da crítica o esteja a aplaudir, pelo fôlego e pelo detalhe. Cita uma passagem da que saiu no Guardian sobre a tendência de Bellow em voltar às mesmas personagens em vários livros: “a ideia de Leader parece ser a de que se colocarmos as várias ficções por camadas, uma sobre a outra, as repetições e aproximações irão produzir uma razoavelmente boa imagem da verdade”, que há uma espécie de escurecimento que leva ao facto. “Vou pensar no assunto enquanto escrevo o segundo volume", brinca Leader, depois de dizer sobre a tarefa de procurar a verdade de uma personagem na vida real através das suas encarnações ficcionais que Saul Bellow voltava vezes sem conta às mesmas personagens que tinham modelos identificáveis na vida e que com isso não era apenas uma questão de invenção ou reinvenção da mesma personagem. “Ele trabalhava em direcção a algo que queria atingir tão profundamente ou com tanta clareza quanto possível de modo a decorar, a fixar a pessoa, não apenas para produzir uma personagem extraordinária e memorável, mas para a fixar uma vida real”.

Estará Zachary Leader a tentar fazer o mesmo com Bellow? Pode ser, mas o estilo é o do biógrafo, o que quer incluir todos os dados da vida e da literatura — em Bellow isso é quase inseparável — na história que conta. O primeiro volume é um encadear de acontecimentos, ideias, leituras. Nada aparece isolado, a história da saída ad Rússia surge com citações de romances, de entrevistas, de ensaios. O livro segue um fio que é uma teia e é nessa complexidade, menos do que na paixão ou brilhantismo da prosa, que está toda a excelência do trabalho de Zachary Leader sobre Saul Bellow. Enquanto a biografia não chega a Portugal, a não ficção compilada por Benjamin Taylor será publicada no verão de 2016, pela Quetzal, a editora que está a publicar cá toda a obra de Saul Bellow.

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