Fernando Pessoa estilo piñata: cada um apanhe o que puder

O Teatro Praga estreou no Festival de Teatro de Istambul Zululuzu, espectáculo que parte dos anos de Fernando Pessoa na África do Sul, mas que é sobretudo um ataque aos clichés.

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Após a estreia em Istambul no Festival de Teatro, o Teatro Praga segue para apresentações em Paris Alípio Padilha

Mas, afinal, onde é que estão os prometidos Fernando Pessoa e a cultura zulu? Onde é que estão os anos de Pessoa em Durban, na África do Sul, porventura essenciais para a sua futura criação poética? Onde é que está o sugerido choque cultural entre as culturas africana e portuguesa que dão forma ao título Zululuzu (luzu enquanto corruptela de luso, relativo a português)? As perguntas finais que se seguiram à estreia absoluta do espectáculo Zululuzu, do Teatro Praga, no 20º Ístanbul Tiyatro Festivali (Festival de Teatro de Istambul), davam voz à estupefacção e à traição perante aquilo que o texto de apresentação da peça inserido no programa parecia prenunciar. E a palavra-chave aqui é “parecia”. Porque o Teatro Praga escrevia também sobre o ataque a clichés culturais e teatrais, e foi isso em que pôs em marcha com a terraplanagem de regras e certezas que – usando um cliché – é a sua imagem de marca.

Às questões que encerraram a sessão de perguntas e respostas, após uma entusiástica recepção do público turco na sala de teatro do centro comercial Cevahir Sahnesi, André e. Teodósio e Pedro Zegre Penim (do núcleo duro do Teatro Praga) responderam com o ponto de partida para a criação de Zululuzu: se Fernando Pessoa escreveu uma coisa e o seu contrário – a favor e contra a monarquia, a favor e contra a ditadura, etc., exemplificou Teodósio –, se Fernando Pessoa foi 72 heterónimos e semi-heterónimos, se acolheu uma tal diversidade dentro de si e da sua escrita, como poderia ser afunilado e reduzido em palco a uma só ideia? Daí que estando em palco, não o está também: está fragmentado e polvilhado por toda a peça, estará sempre pouco de acordo com qualquer imagem construída pelo mito ou por uma leitura pessoal. Está por ali, no palco, aos bocados, estilo piñata – cada um que apanhe o que puder.

Se este pensamento é válido para Pessoa, é válido também para a abordagem da cultura africana. Recusando olhar para África de binóculos e com os pés assentes numa Europa ainda a libertar-se do seu lugar de colonizadora, negando o olhar distante de quem procura apenas o exotismo para reforçar a diferença, Zululuzu explode em todas as direcções, invoca os clichés para os ridicularizar e varrer para longe da vista.

A bordo desta desabrida diatribe que reclama ser um lugar para os excluídos, falada em português, inglês e francês, segue também um ataque cerrado à black box teatral, acusando-a de ser racista por a sua monotonia cromática permitir destacar actores brancos e tornar quase invisíveis actores negros. No fundo, mascarada de toda a sua exuberância, Zululuzu é um ataque cerrado a tudo quanto possa configurar qualquer tipo de convenção.

Após a estreia em Istambul a 19 e 20 de Maio, no Festival de Teatro, o Teatro Praga segue para apresentações em Paris, entre 31 de Maio e 4 de Junho, no Théâtre des Abesses, no âmbito do programa Chantiers d’Europe (promovido pelo Théâtre de la Ville), e em São Paulo, a 9 e 10 de Setembro, no Festival Mirada. Só depois a nova criação da companhia faz a sua estreia portuguesa, cabendo-lhe a abertura de temporada do Teatro São Luiz (Lisboa), de 15 a 25 de Setembro, viajando depois para o Rivoli (Porto), a 7 e 8 de Outubro.

O Público viajou a convite do Teatro São Luiz e da Embaixada de Portugal na Turquia

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