Europa: um mapa para a intimidade de Pedro Zegre Penim

Am Europe é uma trilogia em que Pedro Zegre Penim, do Teatro Praga, deixa que a sua história pessoal se emaranhe na história da Europa, nos seus mitos e arquétipos. Eurovision, Israel e Tear Gas mostram-se na Cuturgest, em Lisboa, como um exemplo de intimidade enxertado em complexos cenários políticos e sociais.

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Israel (2011) Alípio Padilha
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Eurovision (2005) Ângelo Fernandes
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Uma adivinha: sou um cinzeiro de merda de cão, sou um filme sem argumento, escrito no banco de trás de um táxi movido a mijo, sou uma axila imperial a suar Chianti, sou uma sanita sem assento a descarregar água sobre a tradição, sou pastelaria gay e cappuccino racista, sou um exército em férias num museu de guilhotinas, sou uma pintura feita de cabelo numa praia nudista a comer McDonald’s, sou um romance demasiado longo, sou uma canção sentimental, sou um dente amarelo a dançar uma valsa com óculos escuros wraparound.

Quem sou eu? Sou a Europa. A adivinha é, na verdade, uma citação directa da canção I Am Europe, de Chilly Gonzales, tomada por Pedro Zegre Penim para titular um ciclo de três peças (Eurovision, Israel e Tear Gas) que apresenta de sexta a domingo na Culturgest, em Lisboa, numa visita a dez anos de criações com a sua assinatura. Mas a solução para a adivinha é também, por outro lado, aquilo que existe na Europa enquanto construção íntima e não apenas colectiva.

Assim como a identidade grega e, por consequência europeia, se baseia em arquétipos de deuses espelhados e distribuídos de forma desabrida e imperfeita por todo o território continental, também Pedro Penim quis trazer a sua mundana biografia para palco, confundindo-a com a mitologia grega. “A própria ideia de epopeia clássica, homérica, faz-se na Ilíada a partir da história pessoal de alguém, Aquiles, e do drama de ao perder o amor ele desistir de combater e ser castigado”, justifica. “Quis pôr a minha história pessoal mais ou menos nesse paralelo. É um jogo constante, porque não me posso comparar com essas pessoas, mas ao mesmo tempo há uma espécie de tradição e de arquétipo que estou a cumprir. E então tenho de me fazer à vida.” Tal como Homero, um aedo que cantava a sua epopeia, também Penim constrói Tear Gas numa sequência de momentos musicais, adaptando canções de ABBA, Timber Timbre ou Rufus Wainwright, substituindo as letras por pedaços da sua história na Grécia.

Tear Gas, a nova criação da trilogia, nasce das suas viagens regulares à Grécia durante os últimos anos, primeiro profissionais, depois afectivas, em que o cenário de crise, de manifestações políticas e de um país em colapso não pode ser simplesmente desligado e ignorado como mero pano de fundo. É, na verdade, “essa ideia da história íntima ser fundamental para a história universal” que convoca os outros dois textos para o ciclo I Am Europe, dada a recorrência da confusão entre o doméstico e o público, entre a biografia pessoal e o universalismo. E Penim saúda essa confusão transferindo emoções para a Grécia – “a Grécia está triste, a Grécia está eufórica” – ao mesmo tempo que admite que a sua vida amorosa possa, num repente, ser transmitida em directo pela televisão em Gaza.

Há uma necessidade de exposição que, ainda assim, não se torna o olho do furacão de Tear Gas, como aconteceria fatalmente com a francesa Sophie Calle ou, de forma mais crua, com a espanhola Angélica Lidell – Penim, aliás, repete durante a performance que isto “Não é teatro documental, não é um auto-retrato, não sou a Angélica Lidell”. Mas o autor explica-nos ainda outras recusas: a de embarcar num ‘thanatoturismo’, uma modalidade que atrai gente de máquina fotográfica em punho para visitar locais associados a mortes trágicas, de quem quer um lugar na primeira fila “para assistir ao comboio a descarrilar ou ao carro a espatifar-se”, como quem vai a Chernobyl ou a Fukushima. Em palco, Penim afirma: “Quem quer ver ruínas, vai ao Louvre ou a Israel, vai aos templos de Atenas, vai aos escombros de Babel”. As ruínas pessoais, gente em escombros, isso não, por favor.

Pedro Zegre Penim viaja para oferecer e recolher um livro de Alain Badiou. Para visitar esse jornalista judeu que vivia em Atenas e com quem troca SMS projectadas numa tela. Se é para se expor, que seja com a magnitude do cinema. “Esta ideia de ‘conheci-te em Israel e disse-te adeus na Grécia’ foi também algo que entrou na minha vida. É por isso que chamo também a estes espectáculos um mapa antropomórfico. Passei muito tempo em Israel e fiz um espectáculo sobre Israel. Passei muito tempo na Grécia e fiz um espectáculo sobre a Grécia, e tudo acompanha esse relacionamento.” Tornou-se então demasiado irresistível juntar as peças, uma vez que a narrativa íntima de Penim acabou por se colar ao enunciado de George Steiner que cita em Eurovision (2005), onde recupera a ideia de um Y invertido – “a identidade da Europa deriva quase de dois livros, de um lado a Ilíada, do outro a Bíblia.” “De repente, isto parecia tão perfeito, tão apolíneo para o meu trabalho, que é quase uma fortuna que a minha história cumpra este esquema. A minha dúvida foi sempre: a quem é que isto interessa para além de mim próprio? Não faço terapia na vida real e não a quero fazer no palco.”

Mas histórias de amor interessam a toda a gente. E até mesmos os países e os conflitos não escondem os traços comuns com as relações. “As minhas reacções coléricas em relação à minha história pessoal serão talvez as mesmas da Grécia em relação ao resto da Europa, em relação à Alemanha e ao seu futuro”, argumenta. “Não sabem se se separam, que argumentos têm para continuar juntos, se há uma relação de subjugação, quem é mais forte e mais fraco, o que é oferecido e dado em troca.”

Em modo Praga
I Am Europe junta três espectáculos que, dada a carga assumidamente pessoal, carregam uma assinatura pessoal – muito embora tenham sido discutidos dentro das paredes do Teatro Praga, estrutura fundada de forma informal por Penim e mais duas dezenas de alunos de um curso de fim de tarde ministrado, em Lisboa, pela companhia brasileira Sátires em 1995. Nada faria então supor que passadas duas décadas, e tendo em conta que tudo “foi construído da maneira mais desregulada e sem estrutura – em 99% dos casos teria acabado no dia seguinte”, o grupo formado para assumir um espectáculo fosse a actividade principal de Pedro Zegre Penim e se confundisse com o seu percurso. “Nasci com o Teatro Praga”, afirma. “Não há uma diferença entre uma coisa e outra. Não tenho carreira nem antes nem depois. A minha identidade confunde-se mais com a Praga do que acontece com qualquer outra pessoa.”

Antes de mais, naturalmente, porque Penim é o único membro do Teatro Praga que vem desse início – André e. Teodósio e José Maria Vieira Mendes, as outras duas cabeças da companhia, chegaram mais tarde. São eles os três que detêm a chave da linguagem da Praga, partilhando “uma espécie de acordo tácito que permite a cada um confiar cegamente nos outros dois”. Por isso, por não necessitar de se autonomizar para levar à cena espectáculos mais rentes à sua pele, Penim diz que nem perde tempo a reflectir sobre isso: “Não tenho de me preocupar se isto está a fugir muito ou pouco da linha do Teatro Praga porque estou permanentemente em modo Praga.”

Esse modo começou a ter uma forma desde 2002, data de estreia no CENTA do espectáculo Um Mês no Campo, o primeiro em que Penim diz ter conseguido aplicar os ensinamentos que recolhera junto do grupo belga Tg STAN e que revolucionaram a sua noção daquilo que o teatro poderia ser e admitir, questionando o lugar do encenador, do texto e da construção de um espectáculo como uma experiência partilhada a uma mesa. Foi a partir da residência no CENTA, em Vila Velha de Ródão, que o Teatro Praga deixou cair as abordagens mais escolares e amadoras, chegando com o texto de Turgueniev mas esfarelando as hierarquias, assumindo a experimentação e o cruzamento com o vídeo, abandonando em definitivo “a repetição dos velhos mestres dos anos 70, cuja importância foi tão grande que quase criaram uma regra para o teatro português”.

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Eurovision Ângelo Fernandes

Depois, reconhece Penim, o Teatro Praga teve a sorte de ganhar fôlego numa altura em que as estruturas ligadas à dança, com Rui Horta no Espaço d’O Tempo, Lúcia Sigalho na Casa dos Dias de Água e Mónica Calle na Casa Conveniente, os apadrinharam e receberam dentro de um contexto em que a multidisciplinaridade era bem recebida. Pouco depois, com Private Lives, de Noel Coward, passava a haver um maior interesse e uma assumida abertura face àquilo que o colectivo ia produzindo.”Foi quando o mercado começou a reconhecer-nos e a incluir-nos nas suas programações”, conta. “E já tínhamos um mecanismo qualquer de diferenciação no panorama das artes performativas ou europeias. Mas apesar de estarmos no Teatro Nacional, na Culturgest ou no CCB, sítios mais institucionais, nunca mudámos o que nos movia. Fazemos coisas parecidas com aquelas que gostávamos de fazer em 2001 ou 2002, quando ninguém nos conhecia. Só que eles quiseram passar a receber-nos.”

I Am Europe, na Culturgest, coloca-nos diante de um Pedro Zegre Penim, membro do Teatro Praga, em momento de exposição. Deixando-nos espreitar para a sua intimidade, mas sobretudo para uma prática teatral em que assina o texto, a direcção e a interpretação. Ainda assim: “Jamais me consideraria um dramaturgo, assim como essa ideia de ser encenador me é bastante estranha e de ser actor também. Estou a construir uma coisa para ser apresentada num palco, em que tudo isso é usado. Mas aquilo que pode ser denominado de escrita dramática, de encenação ou de representação não tem hierarquia, no sentido em que não estou a escrever uma peça de teatro. É escrita para espectáculo. Isto não é Shakespeare.” Não é. Nem tem de ser.

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