Estes pratos eram um luxo como a pimenta e a seda e têm 500 anos de garantia

Nova exposição no museu de Arte Antiga mostra 58 exemplares de uma raríssima colecção de pratos de porcelana da China. Pertencem à embaixada de França em Lisboa e estão a sair de casa pela primeira vez.

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Os pratos de maiores dimensões eram feitos para impressionar em dias de festa e destinavam-se à exportação Daniel Rocha
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Nos 58 pratos seleccionados para a exposição no MNAA a figura humana aparece pouco representada (prato do período Wanli, entre 1595 e 1600) Daniel Rocha
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A louva-a-deus é um dos motivos Daniel Rocha
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Há macacos, galos e veados, sapos, borboletas e gafanhotos. Mas há também dragões e corvos, pavões que parecem faisões (ou vice-versa), colibris e morcegos e até uma louva-a-deus elegante, executada com toda a minúcia. Um bestiário particular em azul e branco para impressionar convidados que traça a evolução da porcelana da dinastia Ming (1368-1644) e, ao mesmo tempo, evoca a expansão portuguesa e garante um regresso à Lisboa do século XVI, em que nobres e oleiros se cruzavam na freguesia de Santos-o-Velho.

A exposição que é esta quinta-feira inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Azul sobre Ouro, reúne 58 pratos de porcelana chinesa de uma colecção rara que pertence ao Palácio de Santos, casa de reis e da alta nobreza que desde o início do século XX pertence ao Estado francês, que ali instalou a sua embaixada. O acervo que tem 263 peças e que está habitualmente exposto de forma pouco convencional – encastrado num tecto piramidal com uma moldura em talha dourada – sai agora pela primeira vez do palácio, onde está há 330 anos. “O edifício teve obras estruturais entre 1667 e 1687 e a montagem data dessa altura”, explica ao PÚBLICO Rui Trindade, conservador de cerâmica do MNAA e comissário da exposição, com Conceição Borges de Sousa. “O que agora descobrimos é que, muito provavelmente, a montagem da colecção foi feita no chão e só depois a pirâmide foi posta no seu lugar.” Os pratos, alguns com 500 anos, têm uma estrutura metálica a prendê-los ao tecto e estão “em, óptimo estado de conservação, sobretudo se tivermos em conta que sobreviveram a um terramoto”, diz esta responsável pelas colecções de arte oriental.

É a terceira vez que este conjunto sai da sua instalação singular por causa de trabalhos de conservação do edifício – é o que está a acontecer agora na Sala das Porcelanas, a que dá nome – desde que foi reunido pelos antigos proprietários do palácio por onde passaram D. Manuel, D. João III e D. Sebastião, os Lencastres, importante família da nobreza de Lisboa, de gosto refinado, lembra o comissário, para quem este é um acervo “único no mundo”, pela “qualidade, quantidade e diversidade das suas peças”, que vão do século XVI ao XVIII. “Ter uma colecção como esta era sinónimo de status, de importância, porque estes pratos eram um produto de luxo, como a pimenta e a seda, coisa muito rara na Europa antes de os portugueses inaugurarem a Rota do Cabo.”

Foi com a primeira viagem de Vasco da Gama, que chegou a Calecute em 1498, contornando a costa africana e assim ligando o Mediterrâneo ao Índico oriental por via marítima, que os primeiros pratos de porcelana da China viajaram nos porões das naus da coroa portuguesa. “Vasco da Gama sabia do valor comercial desta louça – a pouca que chegava por terra e era vendida na Europa era para uma elite mesmo muito rica -, como sabia do valor da seda e das especiarias. Sabia ao que vinha e percebeu de imediato o valor comercial da porcelana. Foi o primeiro a trazê-la por mar.”

Negócio da China
Na Idade Média, já havia pratos como estes a chegar à Europa mas vinham com a Rota da Seda, precisa o comissário, e eram depois distribuídos a partir de Alexandria e Veneza. Chamavam-lhes louça da Índia. “Depois, durante praticamente todo o século XVI, são os portugueses que a comercializam em grandes quantidades, procurando eliminar todos os intermediários e distribuindo-a pela Holanda, França e Espanha, mas também pela África Ocidental, graças às ligações de D. Manuel ao rei do Congo, e mais tarde pela América do Sul e Central. Este é o verdadeiro negócio da China.”

Um negócio que coloca pratos como estes à mesa da elite europeia, com os de maior dimensão como “peças de aparato”, usados em ocasiões de festa. “Esta porcelana é de grande qualidade e, por isso, não é de espantar que chegue até nós com estes vidrados impecáveis, praticamente sem falhas. Tem 500 anos de garantia.”

Com a porcelana nos porões, ao lado da pimenta ou da canela, as expedições portuguesas ao oriente fizeram a primeira globalização desta louça chinesa, uma globalização que abriu a porta a outra – a que levou às Américas, à África ocidental e ao norte da Europa, a partir do início do século XVII, a faiança produzida em Portugal mas feita “à feição de porcelana da China”.

Em Azul sobre Ouro não há exemplares portugueses de faiança mas é simples estabelecer uma ligação entre essa produção e a colecção dos Lencastres dando um pulo às galerias da exposição permanente do MNAA.

“Sabemos que os oleiros de Lisboa, mal chegam os primeiros pratos de porcelana por via marítima, começam a tomá-los como modelos”, diz Trindade. Mas, como o fabrico da porcelana (argila, com uma mistura de minerais - caulino e feldspato – e depois vidrada) permanece um segredo que missionários e comerciantes tentaram descobrir, em vão, durante muito tempo, as cópias que produzem são em faiança (barro fino vidrado).

“A técnica da porcelana permanecia secreta, como a do trabalho da laca. Os oleiros de Lisboa, e depois os de Coimbra e de Vila Nova de Gaia, copiam porcelana mas produzem faiança. Simplesmente porque não sabem como fazer porcelana [a primeira feita em Portugal data de 1773]”, explica Conceição Borges de Sousa. A faiança azul e branca, com os mesmos motivos chineses, torna-se então um sucedâneo de um produto de luxo, que passa muitas vezes, acredita Trindade, pelo original, embora a porcelana seja bem mais fina e resulte, por isso, em peças bem mais leves.

Património francês
Os artesãos das grandes olarias de Lisboa, instaladas na zona de Santos, onde está hoje o MNAA e o próprio palácio, “inspiravam-se” nas peças de importação. Segundo o comissário há até “90% de hipóteses” de peças da colecção que hoje pertence à embaixada de França terem servido de modelo. E porquê tanta certeza? Porque José Luís de Lencastre, proprietário do Palácio de Santos e o homem a quem se deve a decoração da Sala das Porcelanas, era também o dono de uma olaria na Rua da Madragoa, a escassos metros da sua casa.

“Esta influência da China é depois assimilada em termos nacionais e mantém-se até hoje em alguma da produção cerâmica, embora seja mais forte até ao século XVIII.” E de tal forma ela se nota que, na viragem do XVI para o XVII, “toda a Europa faz louça policromada, enquanto em Portugal a maioria continua a ser em azul e branco”, reservando-se as outras cores para o azulejo.

Na exposição que termina a 24 de Maio há apenas uma peça com outras cores, um pequeno prato com um círculo vermelho ao centro e decorações em azul turquesa com vestígios de dourado, destinado ao mercado japonês (entre as 263 peças do tecto dos Lencastres são apenas quatro as que não são a azul de cobalto e branco). O outro objecto que difere dos pratos saídos de serviços de porcelana da China é um gomil (1575-1585), que na instalação piramidal, ocupa o centro. O bico e a asa deste jarro de boca estreita foram partidos de propósito para que coubesse no centro da composição, diz a comissária. É possível que tivesse também decorações a dourado. “Não há nada como isto nas colecções dos museus portugueses”, garante. A conservadora de arte oriental refere-se ao trabalho rendilhado da peça, de grande pormenor e rigor de execução. “E este, é preciso lembrar, é uma peça do património francês.”

O Palácio de Santos foi vendido com o seu recheio e não está classificado (de acordo com a Direcção-Geral do Património Cultural, está incluído na zona especial de protecção do Museu Nacional de Arte Antiga, da Igreja de São Francisco de Paula, do Convento das Trinas do Mocambo e do Chafariz da Esperança).

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