Este país que nunca arrefece

Valério Romão num combate contra o entendimento linear de uma realidade que todos pretendem perceber: a família

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Valério Romão desenvolve temas que têm tido enorme importância na sua escrita: as dinâmicas familiares e a doença

Dois livros recentemente lançados pelo escritor Valério Romão desenvolvem temas que têm tido enorme importância na sua escrita. Os contos reunidos em Da Família e a peça A Mala voltam a atribuir um papel central, respectivamente, às dinâmicas relacionais de núcleos familiares em clivagem, e ao campo aberto da doença. A expressão “da família” configura, portanto, aquilo que na gramática tradicional (como veio a ser chamada…) se classifica como complemento circunstancial de assunto. O que faz toda a diferença. Pois não há nesta fórmula um completamento — “problemas da família”, “circunstâncias da família” —, mas o quid de todas as narrativas. Como se o autor nos dissesse: vou falar-vos da família. De modo a suplementar esse desiderato, mas também para confundir as intenções, a capa deste volume de contos inclui no seu grafismo a representação de um espelho que ostenta uma superfície literalmente especular. O que perturba tudo é, todavia, que, dada a natural curvatura da capa do livro, este devolve uma imagem ao observador que o distorce sem remissão. Será difícil olhar esta capa e reconhecer-se no rosto reflectido. Esta circunstância paratextual nada tem de decorativo, nem de acidental. Ela representa, bem ao contrário, um prolongamento gráfico e material da convulsão que grassa em Da Família. Que grassa na família, seríamos tentados a arriscar. E que não pode deixar de representar, igualmente, o indivíduo. Daí que adquiram especial relevância estes prolegómenos. Porque os contos aqui reunidos fornecem uma visão que nunca poderá ser unívoca, lisa, dos corpos e dos espíritos que se digladiam nestas páginas. Além disso, há nomes próprios que transitam de conto para conto, pais que se chamam invariavelmente Henrique e mães chamadas Marta. E até os cães são todos Nero. Porque importa mais a universalidade do que possa ser uma família — ainda que disseminada pelos exemplos de múltiplos agregados — do que a individualidade do caso a caso.

É possível estabelecer um nexo condutor a unir estes contos à anterior ficção de Valério. Por exemplo, “a trela da profissão” (p. 7) apertada à volta de uma personagem emDa Família regressa a esse “turbilhão anestesiante do casa-trabalho-casa” que se vivia em Facas (Companhia das Ilhas, 2013). Do mesmo modo que o “triatlo novela-concurso-telejornal”, último refúgio de uma idosa a braços com uma doença degenerativa, se relaciona irresistivelmente com a degenerescência do que, naquele mesmoFacas, se conhecia por “TVShop (…) aparthotel”. Naquele conto, A avó foi sendo esquecida, o concretíssimo pesadelo da doença de Alzheimer faz pensar no que virá a ser o pórtico final da trilogia das Paternidades Falhadas de Valério Romão. Também em A avó… a paternidade falha. Porque desistiu da possibilidade de cura, e definitivamente descartou a inocência desse neto que pretendia encontrar no afecto, resguardado num quarto que era um casulo protegido, uma terapêutica que o mundo não podia aceitar. Porque ela dependia apenas da “empatia magnética” (p. 17) presente num outro texto. Isso que um conto como Quando o pai começou a meter ar conhece por “carinho, o magnetismo unipolar pelo qual se unem criaturas que partilhem genes e afecto na mesma proporção” (p. 41). Nesse, que é um dos registos mais surrealizantes em Da Família, o pai engorda do ar que o faz intumescer até se tornar um grotesco balão de carne, colado “à flor do tecto” (p. 46). Mas mesmo aí parece importar menos a tentativa de superar a realidade do que o gesto de captar essa mesma realidade, em toda a sua estranheza, através das mais poderosas tensões do concebível.

Estas são vidas que se desenrolam em permanente tensão, cuja única hipótese de transporte no espaço parece equacionada numa “carroça da morte” (p. 16). Tudo se concentra numa claustrofobia que não varia o perímetro sufocante de vidas que se aglutinam num espaço-tempo irrespirável. Uma vida em suspenso por morte de um dos cônjuges prolonga-se sob um cenário de “chuva ácida” (p. 18). Estes contos testam o real que representam, mesmo quando o fazem pelos meios mais inviáveis. Há dois simulacros de uma mãe desaparecida do núcleo familiar no conto À medida que fomos recuperando a mãe. Um é a fotografia com que os filhos tentam ocupar o lugar vazio à mesa, ao mesmo tempo procurando preencher o buraco negro cavado no pai sobrevivente. O outro é o mais perturbante deles — e um dos momentos mais inquietantes de todo o livro —, quando um dos filhos assume a máscara da mãe. A essa recta final do insólito horror a que pode chegar a família não se vai ter, porém, de um só golpe. Primeiro, é a voz da mãe imitada pelo filho, que mais tarde se apropria dos trejeitos e maneirismos maternos. Apenas depois de corrido o que outro conto chamará o “labirinto bolorento de culpa e de saudade” (p. 53) é que um canhestro travestismo de peruca e maquilhagem carregará de cores sombrias esta longa jornada até à mais profunda noite. Toda a estranheza para aqui convocada mais não é do que a concentração de uma anomalia mais radical, na cosmovisão de Valério Romão: o insólito de sermos.

Em O Abysmo também olha longamente para ti, o narrador poderá ser Hitler. Mas só as linhas finais no-lo revelarão. E todavia, tudo há-de ficar em aberto. Apenas porque o seu nome próprio coincide, e algumas circunstâncias biográficas são conformes, nada nos garante que não se trate de mais um dos notáveis despistes de uma arte ficcional que leva tanto as suas personagens ao limite, como conduz os sentidos a extremos. O mesmo faz ao leitor. E, no entanto, tudo isso é conduzido de modo surpreendentemente singelo. Umas das capacidades que esta escrita possui em elevado grau é a de utilizar materiais tudo menos nobres, correntes, banais mesmo, e transformá-los em alguma coisa de válido e forçoso. Os segredos trazidos à mesa familiar, por exemplo, são-no “como frutas para dentro de cestos” (p. 39). Do mesmo modo que os membros de um casal caídos “um em cima do outro” são “fruta madura em alguidar de linho à espera do consolo da noite e do silêncio” (p. 73). Esta técnica que consiste em aproximar seres humanos de outras formas intensifica e acelera o processo de extinção que tantos destes pontos desenham para todos nós. Seres como fruta prestes a apodrecer.

Numa escrita precisa e escassa em ornamentos, Valério Romão volta a auscultar impiedosamente as arritmias do coração familiar, com um rigor clínico, que não esquece a vertigem do doente. A mãe do conto com o inverosímil título Sobre a física das partículas e a teoria do multiverso quando o bosão de higgs apresenta uma massa inesperada de 125 gev é uma nova Medeia. Sintomaticamente, porém, ela não mata o filho por ciúmes, mas por desespero. Os versos com que tudo termina são a derradeira fala daquela mãe enlouquecida pela assombrosa doença do filho — “este era o António/ o Rogério já não volta/ como vês/ bem tentei” (p. 79). Não se trata de uma metodologia estritamente literária, mas de uma técnica de guerrilha. O combate é contra o entendimento linear de uma realidade que, à partida, qualquer um parece perceber: a família.

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