Esta infâmia é uma paródia

O livro que fez Jorge Luis Borges corar de vergonha aos cinquenta anos é o mesmo onde estão muitas das características da sua obra. Tem vido a ser recuperado como essencial para entender o grande escritor argentino. Oitenta anos depois, o primeiro Borges ficcional tem nova edição portuguesa.

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Jorge Luis Borges misturou características de personagens literárias e bíblicas, deu-lhes outros nomes, por vezes, e acrescentou-lhes detalhes biográficos HORACIO VILLALOBOS

Numa entrevista a uma rádio francesa muitos anos depois de ter sido publicada a sua História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges referiu-se ao título como resultado da intenção de um jovem em chocar os seus leitores com uma “palavra bombástica”: infâmia.

Era um livro que ele encarava com algum desprezo, chamando-lhe o “jogo irresponsável de um tímido que não ousou escrever contos e se distraiu a falsear a tergiversar (sem justificação estética alguma vezes) histórias alheias”. Era o olhar distante de um escritor que já tinha produzido os seus textos mais emblemáticos, como Ficções (1944) ou O Aleph (1949,) perante a sua primeira experiência na prosa, algo de que estava longe de se orgulhar, mas onde críticos e biógrafos apontam traços do que viria a ser a sua marca literária: a imaginação delirante, a capacidade de, efabulando, criar personagens míticas, e de entrar e de desmontar a mente humana a partir dos pormenores mais mundanos.

A entrada de Jorge Luis Borges na prosa de ficção fez-se pela porta dos fundos, considera um dos seus biógrafos, Gene H. Bell-Villada no livro Borges and his Fiction (2000).

Em 1932, aos 33 anos, tinha encontrado aquele que era o seu primeiro verdadeiro emprego, um trabalho como redactor na Crítica, pouco mais do que “uma revista de escândalos” com algumas pretensões literárias que o dono da publicação estimulava, contratando jovens com aspirações para escreverem textos no seu suplemento Revista multicolor de los sábados. Semanalmente, Borges publicava ensaios, críticas, traduções e histórias de crimes e de vilões quase sempre com um ponto de partida real ou ficcionado por outros, que se divertia a adaptar de forma livre.

Malfeitores de todas as espécies com traços de carácter bizarros, piratas, charlatães, assassinos, ladrões de bairro eram protagonistas de episódios contados em tom barroco, ao jeito dos folhetins de crime da época, com uma abordagem literária que alguns apontam próxima da de Vidas Imaginárias, do francês de origem judaica Marcel Schwob (original de 1896). Para Schwob os factos nem sempre estavam ao serviço das verdades interiores; essas tinham de ser procuradas nas entrelinhas, numa espécie de universo paralelo. Borges terá feito essa descoberta por acaso, quando ao escrever peças jornalísticas, partindo de factos noticiados em diversas fontes, não resistiu a apimentá-las. Mesmo nos seus excessos estilísticos, na caricatura, na derivação fantasiosa estes textos podem ser colocados na mesma linha de pensamento de Schwob e não são, como muitos foram sugerindo ao longo dos tempos, resultado de uma atitude moralista perante a sociedade, facto que o próprio Borges desvalorizava. Exemplo maior disso é o facto de ter considerado excessiva a escolha da palavra Infâmia para o título do livro. Unicamente para causar choque.

Personagens como Lazarus Morell, que fez fortuna vendendo falsas liberdades a escravos; o inverosímil impostor Tom Castro que se fez passar pelo filho de uma europeia rica; a viúva pirata Ching que espalhava terror nos mares da Ásia e astuciosamente fintava o julgamento; o “provedor de iniquidades” e pistoleiro de Nova Iorque Monk Eastman; o assassino Bill Harrigan que haveria de ficar conhecido como Billy the Kid, rapaz que aos 21 anos já tinha despachado pelo menos tantos homens quanta a sua idade; o japonês mestre-de-cerimónias Kotsuké no Suké que se recusava a cometer hara-kiri; o falsário tintureiro Hakim de Merv ou o recém-chegado à morte Melanchton existiram como centrais em histórias de crime, com vidas contadas em pequenas enciclopédias ou livros que eram uma espécie de resenhas de insólitos, mas só ganharam universalidade graças aos textos que Borges escreveu em 1932 e 1934. Deu-lhes outros nomes, por vezes, acrescentou-lhes detalhes biográficos, misturou características de personagens literárias e bíblicas, o assassino Billy the Kid metamorfoseia-se num rapaz nova-iorquino de nome Billy. Real e fantasia equilibram-se. A excepção a esta realidade adaptada, neste seu primeiro volume de prosa, é o conto O Homem da Esquina Rosada, penúltima história desta História Universal da Infâmia, onde o protagonista Rosendo Juárez nasce apenas da imaginação do autor e é, de facto, a primeira narrativa ficcional de Borges.

Escrito em 1933, foi publicada com o título Hombres en las orillas e assinada com o pseudónimo de Francisco Bustus. Neste, como nos textos anteriores, não está a prosa límpida associada Borges. O modo como conta a história do compadrito, um tipo social característico da Buenos Aires suburana de finais do século XIX, é cheio de trejeitos literários. “A vocês, é claro que lhes falta a devida experiência para reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Rastilheiro, era dos que roncava mais grosso em Vila Santa Rita. Moço afamado com a navalha, era dos homens de Morel. Sabia chegar todo bem arreado a uma casa de tias, pela noite calada, com dinheiro farto; os homens e os cães respeitavam-no, e as mestiças também; ninguém ignorava que tinha duas mortes por pagar; usava um chapéu alto, de aba delgada, sobre a melena besuntada; a sorte ia ter com ele, é uma maneira de dizer. Os rapazes da Villa, todos nós, o imitávamos até no modo de cuspir. Todavia, uma noite mostrou-nos a verdadeira condição de Rosendo.”

A última frase remete para uma das características desta e das histórias aqui contidas e que Borges continuará a cultivar: o efeito surpresa. E torna-se claro, desta leitura, que este é mais do que “só o exercício literário de um tímido”, como escreveu Davi Arrigucci Jr. na revista Piauí, em Abril de 2012, relacionando esse conto com a biografia do autor, com a “mitologia suburbana” a relacionar-se com o “espaço épico da formação nacional” a que não eram alheios traços da sua vida familiar, onde não faltavam militares. Borges procurava ali “a busca do domínio do ofício da construção da narrativa ficcional”, resultado de anos de observação e de leitura enciclopédica, de atenção às falas que haveria sempre de estar na sua escrita fortemente oral ou cuidado na construção de imagens. De tudo isso, e também da ironia, haveria de derivar o nome escolhido para o volume, quando em 1935 o editor lhe propôs a publicação de algumas dessas histórias.

Sem a Infâmia...

Borges terá reagido com surpresa, aceitando contudo a proposta e escrevendo um prefácio onde refere que na origem destes escritos estiveram as suas “releituras” de Stevenson e de Chesterton, além dos filmes de Von Sternberg, no seu propósito icónico “e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego”, esclarece. Ainda sem o distanciamento que o levará a dizer que este livro é de fazer corar, de tal forma se sente longe do estilo escolhido, o autor de Aleph, vai avisando para o abuso de alguns processos. A saber: “enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”, e desmente a pretensão de que qualquer destes retratos seja psicológico. De facto, nunca se alonga acerca das motivações ou dos condicionantes que levaram alguém a ter determinado comportamento ou uma densidade que permita construir um universo interior, íntimo de qualquer das suas personagens. O que os move é o imediato: poder, dinheiro, vingança.

O livro foi publicado nesse ano e terá vendido 37 exemplares, conta Edwin Williamson na biografia Borges: A Life (Penguin, 2005). Escreve Williamson que o autor argentino não se sentiu melindrado com o facto, antes um felizardo por não ter de falar do mundo que inventara a não ser a meia dúzia de amigos. “O mundo poderia ouvi-lo, se quisesse, mas isso levaria tempo”.    

Foi há oitenta anos. Borges reviu a edição em 1954, com o descanso já descrito e escrevendo um novo prólogo. Era um livro quase remetido ao universo castelhano. Em Portugal, a primeira edição é de 1964, uma tradução de Francisco Lopes Cipriano para a Europa América, seguiram-se outras. As mais recentes de José Bento para a Assírio & Alvim e agora para a Quetzal. Em inglês, a Infâmia surgiu apenas em 1972. Anos antes, também em 1964, um artigo na New Yorker lamentava a demora anglo-saxónica em reconhecer o génio de Borges, referindo justamente a Infâmia como uma ausência pouco justificável. Sem ela, por exemplo, perde-se uma das passagens mais sublinhadas da obra de Borges, que contradiz as suas desculpas na Introdução pelo exagero no modo como usa a enumeração. Em Borges and his Fiction, Bell-Villada lembra o modo como a usou em Aleph e volta a sublinhar o parágrafo de abertura de O Atroz Redentor Lazarus Morell (a primeiro das histórias) como génese desse traço pessoal, quando apresenta o padre Bartolomé de las Casas. “A essa curiosa variação de um filantropo devemos factos infinitos: os blues de Handy, o êxito alcançado em Paris pelo pintor doutor oriental D. Pedro Figari, a boa prosa bravia do também oriental D. Vicente Rossi, o tamanho mitológico de Abraham Lincoln, os 500 mil mortos da Guerra da Secessão, os 3300 milhões gastos em pensões militares, a estátua do imaginário Falucho, a admissão do verbo linchar na 13ª edição do Dicionário da Academia, o impetuoso filme Aleluya, a forte carga de baioneta conduzida por Soller à frente dos seus Pardos y Morenos no Cerrito, a graça da menina Fulana, o mulato que assassinou Martín Fierro, a deplorável ruma El Manisero, o napoleonismo corajoso e encarcerado de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no Haiti, o sangue das cabras degoladas pela catana do papaloi, a habanera mãe do tango, o candombe. Além disso: a culpável e magnífica existência do atroz redentor Lazarus Morell.”

Talvez já haja aqui matéria suficiente para a teoria, defendida pelos estudiosos de Borges, de que ele não considerava a infâmia um tema moral, nem que as histórias aqui contadas pretendem ser um dedo apontado à sociedade ou à natureza humana ou ao destino. O tom é o de paródia, como o título, aliás. A enumeração exaustiva e o número de episódios e de personagens vilãs, os diversos universos de que provêm: os subúrbios de Buenos Aires, os mares da China, o deserto da Arábia, os guetos de Nova Iorque remetem para essa universalidade do título. Ele brinca com a tentação de compilar tudo em volumes numa altura em que proliferavam livros de “todo o saber”, como as enciclopédias de que fora ávido leitor. Quanto ao uso do termo “infâmia”, é quase sempre estético ou formal do que ético. Numa das histórias, dedica-lhe um tratado onde não falta ironia.

O que Borges terá repudiado acerca deste livro será talvez o modo como ele surgiu, a génese. Ou seja, a apropriação de histórias que não eram da sua autoria ainda que as tenha feito suas através do modo como as fantasiou e alterou. Como sublinha Bell-Villada na biografia que assinou, uma das mais pessoais doutrinas de Borges é a ideia de que nenhum trabalho de literatura é verdadeiramente original, qualquer livro deriva de um livro anterior.

Isso está neste primeiro Borges ficcional.

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