Esplendor e terror

O romance de Lydie Salvayre, Nada de Lágrimas, é um livro amável, mas fica aquém de vários seus predecessores que tematizaram a Guerra Civil de Espanha.

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A sombra de Bernanos paira sobre Lydie Salvayre neste romance sobre a Guerra Civil de Espanha com que venceu o Goncourt DOMINIQUE FAGET/afp

A literatura que tematiza a Guerra Civil de Espanha (1936-1939) é vasta, rica e variada. Em diversas línguas e em diversos países.

A Esperança

 (1937), de André Malraux,

Homenagem à Catalunha

 (1938), de George Orwell, 

Os Grandes Cemitérios sob a Lua

 (1938), de Georges Bernanos, e 

Por Quem os Sinos Dobram

 (1940), de Ernest Hemingway, são quatro dos mais (justamente) conhecidos (e todos disponíveis em língua portuguesa). Mas poderíamos falar de Arthur Koestler, Ilia Ehrenbourg, John dos Passos, Elio Vittorini, Camilo José Cela, Javier Cercas… Quanto à poesia, haverá poeta, contemporâneo dos factos ou imediatamente posterior, que não tenha escrito o seu poema sobre o assunto? 

Nada de Lágrimas

 vem juntar-se a esta longa e exigente lista. Premiado com o Goncourt de 2014, o romance mais recente da escritora francesa Lydie Salvayre (n. 1948) é um livro amável, mas que fica aquém de qualquer dos seus predecessores acima citados. E perde, em particular, se o confrontarmos com o poderoso e pungente texto de Bernanos, que Salvayre, aliás, tanto canibaliza e parasita.

Também psiquiatra, Lydie Salvayre nasceu no Sudoeste de França em 1948 (o ano da morte de Bernanos, curiosamente), e publicou o seu primeiro romance em 1990. A estreia pode ter sido “tardia”, mas foi bem-sucedida, somando hoje uma vintena de títulos a bibliografia activa da escritora. Os pais eram refugiados republicanos espanhóis, forçados ao exílio pelo franquismo. A mãe era catalã, o pai andaluz. Pobres ou remediados. Lydie Salvayre só começou a aprender francês quando entrou para a escola. Em casa, vigorava o fragnol materno — mistura de francês e espanhol (ou melhor, castelhano). E isto só é aqui relevado porque a autora institui essa estranheza linguística como ferramenta recorrente (embora por vezes meramente anedótica) da escrita do livro: “A minha mãe conta-me tudo isto na sua língua, isto é, neste francês defeituoso que ela usa, que ela estropia, para ser mais precisa, e que eu me esforço constantemente por corrigir” (p. 87). Quem fala é Lidia, a narradora em segunda mão, alter ego da autora; e o “tudo” que Montserrat, sua mãe, lhe conta, em 2011, com 90 anos de idade, reporta-se a acontecimentos ocorridos 75 anos antes em Barcelona e numa aldeia ignota da Catalunha: trata-se do esplendor do Verão quente de 1936, do “júbilo de Julho” desse ano, e do Agosto do “alvorecer esplêndido” da insurreição libertária, trata-se daquele Verão “em que o inimaginável teve lugar”. Sendo a referida aldeia um microcosmos representativo dos conflitos ideológicos e das tragédias da Guerra Civil de Espanha e do século, Salvayre introduz, esquematicamente, a personagem do lírico e solar anarquista José, irmão de Montserrat, que há-de conflituar com o frio e burocrático comunista Diego, filho do proprietário mais rico da terra (“et pour cause…”), perante a assembleia dos temerosos, desconfiados e calculistas aldeões. Nestas andanças, qualquer semelhança com o Verão quente português de 1975 não será pura coincidência. Já sobre as façanhas estalinistas na Catalunha, Orwell é leitura mais recomendável.

O trágico e poético José (que, entre outras “bakuninerias”, considerava Neruda “o mais servil dos poetas estalinistas”) acaba baleado pelos nacionalistas de Franco. Depois de devidamente desiludido: “É a isso que se chama amadurecer? Essa derrota?” (p. 192). Dupla derrota: às mãos da ordem estalinista, primeiro, e do despotismo franquista, depois. Diego acabará exilado, obviamente. Em Georges Bernanos (1888-1948) e no seu livro Os Grandes Cemitérios sob a Lua vai a autora encontrar o testemunho do terror do outro lado da barricada. Testemunho tanto mais relevante quanto se trata de um católico conservador e monárquico que recusa o silêncio e a cobardia usuais nestas circunstâncias e cedo denuncia as atrocidades cometidas em Palma de Maiorca pelos nacionalistas. Nada de Lágrimas usa e abusa das citações que vai buscar ao corajoso e magnífico panfleto de Bernanos mas, se outros méritos não tivesse, o livro assumidamente autobiográfico de Salvayre teria pelo menos este: o de convidar à leitura ou à releitura de Os Grandes Cemitérios sob a Lua.

A estas duas fontes, Lidia, a nossa narradora, soma uma terceira: “Para não me perder nos relatos de Bernanos ou nos da minha mãe, cheios de meandros e de lacunas, fui consultar uns quantos livros de história” (p.82). O estratagema, ditado pela (adivinhada ou suposta) necessidade de contextualizar factualmente a narração, não deixa de gerar por vezes um excessivo e estéril didactismo. O problema é este: a história que Salvayre nos conta que lhe contam só funciona (ou funciona melhor) se amparada pela História, mas esta, por sua vez, prescinde do residual romanesco daquela. 

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