Escrita irritada pode ser delicada

Compreendi que o Português só poderá ter valor como língua importante quando deixar de ter variações locais em diferentes continentes.

Gostei muito de ler a crónica “O injustificável acordo orto(?)gráfico” do apreciado poeta e crítico literário Gastão Cruz, repudiando a Língua Portuguesa atual e argumentando que o Acordo Ortográfico em vigor é estúpido e inútil, o que muito o irrita.

Aceito que se irrite e o ache inútil, mas não que chame “estúpido” ao trabalho coletivo de uma série de homens de letras de uma craveira possivelmente tão elevada como a sua. Apreciei a argumentação dura do poeta (talvez num dia um tanto azedo?), mas a sua crítica está muito bem fundamentada, tendo em conta o conhecimento de que dispõe sobre o Acordo.

O texto é pouco objetivo, pois só refere aspetos negativos e ignora tudo o resto. Se estivesse na sua situação, eu provavelmente pensaria da mesma forma, mas com menos violência. Por vezes uma pessoa, mesmo sendo poeta, na falta de argumentos recorre à ofensa física ou oral.

Pela minha parte sou um simples professor. Não tenho obras publicadas nem contatos com figuras públicas. Sou anónimo. Mais duas diferenças: apesar de ter o mesmo curso de Gastão Cruz, sai da faculdade quando ele entrou, e estou bastante mais a par do Acordo, pois nele reconheço aspetos negativos mas também positivos. E a diferença fundamental: a ortografia de antes ou depois do A.O. não me afeta, pois a minha vida não depende da imobilidade indispensável a quem escreve por profissão.

Há dois tipos de portugueses adultos: os que “deram a volta” e se atualizaram e continuam a sonhar, e os que “não deram a volta” e estacionaram, satisfeitos com as posições já alcançadas.

Como professor lecionei durante décadas Português no estrangeiro, principalmente na Alemanha, e Língua Portuguesa para Estrangeiros na Faculdade de Letras. Ao longo da vida dediquei-me somente a estudar a nossa língua e devo confessar que só comecei a compreendê-la em profundidade depois de vários anos a ensinar universitários estrangeiros e a tentar responder às suas perguntas e dúvidas. Até então eu era um docente interessado e culto, que pensava dominar perfeitamente a língua portuguesa, depois de a ter usado, estudado e ensinado ao longo de muitos anos.

Ao tentar esclarecer as dúvidas e questões que os meus alunos europeus, asiáticos, americanos, africanos e oceânicos me punham, tentando compreendê-las por comparação com a descrição que me iam fazendo da gramática das suas línguas maternas, descobri que a língua que eu falo não é tão perfeita como eu julgava.

A nível mundial o Português que falamos é uma língua com origem num latim muito bárbaro, com forte influência do grego e do árabe, para além de outras, como o francês e modernamente o inglês. Comparada com outras é uma língua um tanto confusa e bastante ilógica, com vagas e antiquadas regras, que pouca gente conhece e respeita. E o que é errado, depois de repetido milhões de vezes, torna-se correto.

Compreendi que o Português só poderá ter valor como língua importante quando deixar de ter variações locais em diferentes continentes. E descobri também que quase todos os alunos estrangeiros queriam afinal aprender Português para futuras ligações, integrações e negócios com o Brasil, Angola, Moçambique, Guiné, Macau, Timor etc e também para poderem depois ensinar Português nos seus próprios países.

A relativamente poucos interessa aprender o “Português só de Portugal”: só para turismo de férias, namoro ocasional, segunda residência de estrangeiros reformados ou falso casamento negociado para permitir a entrada na Europa.

Esta descoberta surpreendeu-me e causou-me problemas, ao reconhecer que afinal não dominava a língua mundial que os alunos pediam que lhes ensinasse.

Felizmente as línguas são na sua essência faladas. Quando nascemos não sabemos falar. Aprendemos a comunicar com as pessoas que nos estão próximas por ruídos, gestos e finalmente pela fala, que nos acompanha e vai evoluindo ao longo da vida. Só anos depois compreendemos que não é possível falar com pessoas que estão longe de nós. Informam-nos ser possível comunicar por nuvens de fumo, reflexos de espelhos, bandeirolas em mastros. Obrigam-nos depois a ir para a escola e a reproduzir por escrito os sons com que comunicamos com as outras pessoas. Mas criam regras nem sempre claras, para nos cercear a liberdade.

A ortografia é sempre uma tentativa de acompanhar a fala, e esta, como a língua é viva, vai-se alterando lentamente e evoluindo ao longo do tempo. Vão aparecendo novas invenções a que é preciso dar nome e desaparecendo outras tornadas inúteis, às quais ninguém mais se refere.

A maioria dos neologismos são cópias e imitações de palavras inglesas que nada têm a ver com as nossas raízes linguísticas. Ainda mais infelizmente, as mensagens que os jovens teclam nos seus telemóveis e afins já não são escritas em Português, mas numa mistura de abreviaturas, símbolos e anglicismos que horrorizam os cada vez menos puristas da língua.

Mas nem tudo é mau. A comunicação escrita é cada vez menor, substituída pela comunicação oral, que no fundo é a forma original de as pessoas comunicarem entre si. Felizmente foram sendo inventadas formas de comunicar à distância usando a fala e não necessitando de recorrer à complicada escrita. Quando a comunicação oral progride, a comunicação escrita regride.

Eu próprio acreditava escrever sem erros até descobrir que ainda faço vários. E ao ouvir gravações de como falo, ainda mais horrorizado fiquei.

O mesmo acontece com as pessoas que conheço, incluindo professores de Português. Não consigo recordar um português culto em cuja escrita não tenha encontrado pequenos erros de língua.

Na Faculdade apareciam-me por vezes estudantes portugueses, finalistas de Letras, a pedir autorização para assistir às aulas de Português dos estrangeiros, “para os ajudar a integrar-se, a conviver e a conhecer a cidade”, principalmente suecas e italianas.

Quando havia ditado, os portugueses, “para ajudar a integração” sorriam e pediam para fazer também o ditado. Curioso é verificar que os alunos estrangeiros fazem menos erros do que os finalistas portugueses, que tinham anunciado que “aquilo ia ser canja”. Uma chinesa perguntou até a um dos visitantes: Se você aprendeu bem a sua língua, porque faz tantos erros?

Na sua essência as divergências que hoje existem entre quem se declara a favor ou contra o Acordo são naturais mas não são fáceis de eliminar. Na anterior Reforma Ortográfica, em 2011, foi tudo muitíssimo mais complicado.

O A.O. veio facilitar a comunicação em língua portuguesa a nível internacional e mundial, mas a nível local veio prejudicar muitos cidadãos cuja subsistência está relacionada com a manutenção da imobilidade da ortografia em que nasceram, principalmente escritores, editores e críticos literários. Tal como os teclados eletrónicos estragaram a vida aos tipógrafos que enfileiravam à mão as letras das frases, também o “Português mundial” vem pôr de lado o “Português só nacional” que até agora dava emprego e estabilidade financeira a profissionais desejosos de sossego e paz. Mas a nível particular cada adulto é livre de escrever como lhe tentaram ensinar na escola primária.

No fundo cada pessoa tem hoje de optar entre duas opções:

– Ser uma pessoa que prefere viver num país pequeno e isolado, se sente satisfeita com o nível de estabilidade e reconhecimento que o seu trabalho lhes proporciona, e que comunica com o exterior numa antiga língua local com 10 milhões de falantes.

– Ser uma pessoa que nasceu num país pequeno e isolado, mas que se sente também cidadão do mundo e ousa enfrentar novos desafios, aceitando várias mudanças na sua vida e na sua relação com uma língua viva com mais de 200 milhões de falantes.

Creio integrar-me no segundo grupo. Apesar de ser hoje um septuagenário, mantenho o meu espírito em bom estado, acompanho o meu tempo e continuo com vontade de ajudar o meu país a progredir.

 

João Cidreiro Lopes

Professor de línguas aposentado

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