Esconjuro conjugal

Frederico Pedreira explora com enorme destreza os cadafalsos da convivência. Como um encantador de serpentes que não teme o veneno

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Frederico Pedreira trata de uma batalha, a dos sexos — mas não pela estrada concorrida, antes pela mais sombria e desempedrada, onde os pés mais ficarão doídos e mais o leitor se aleijará Rui Gaudêncio

Depois de Doze Passos Atrás (Artefacto, 2013), que representava um visível progresso na poesia de Frederico Pedreira, e de Um Bárbaro em Casa (Língua Morta, 2014), que o revelou um prosador exímio, Presa Comum traz o autor de volta ao poema. Um regresso que não é arriscado acolher com um inequívoco sinal de aprovação. No seu mais recente livro, o poeta apresenta um notável conjunto de poemas, divididos em três secções: Cenas de Uma Vida ConjugalLido – Murano – Lido, Donzel. Apesar da pertinência dessa organização, há recorrências fortes que percorrem todo o livro, e existe um mesmo investimento no exercício corajosamente especulativo que estes poemas são. Pelo que a deriva geográfica da segunda parte e a aparente restrição temática da última secção não impedem a coerência temática e processual de Presa Comum.

Há dois princípios que norteiam — ainda que de forma distinta — este livro. Um corresponde a um padrão que estrutura a sua gramática. Outro constitui uma forma de orientar as suas temáticas e de inscrever os seus tropos numa grelha contextual. A declinação dos pronomes pessoais assume um papel importante, não só por demarcar o plural da pessoa gramatical mais vezes em causa, mas também por assumir um lugar na constituição do universo prosódico e organizativo destes poemas — “Nos primeiros dias fui eu que te/ tive em mim virando-te para o mundo./ Sonâmbulo que te respeita” (p. 21); “pede-me coisas, pedi-te eu” (p. 49). Intimamente relacionada com a componente dialógica do livro é a presença do jogo — “Regressa-se à casa de partida (…)/ por respiração entendo jogo viciado” (p. 23); “Remexemos o baralho de horas e papéis” (p. 26); “parados na expectativa ou quebrando/ a pontuação da morte” (p. 60). A instalação dos poemas nessa órbita acontece porque é do jogo do amor e da morte que está aqui a tratar-se. Do jogo de azar da vida. Jogo que não significa, aqui, qualquer assomo de ludismo, mas representa uma das mais eficazes alegorias relativamente ao princípio de incerteza sobre o qual estes versos caminham — o jogo, na sua imponderabilidade é como uma rede que cobre os seus passos.

A expressão que dá corpo ao título encerra uma ambiguidade que, se não é buscada, pode imaginar-se acolhida de boa mente por este livro. É plausível que o adjectivo “comum” se refira a um elemento partilhado, ou seja, à unidade; contudo, pode nele perceber-se a exposição de uma banalidade habitual. Ambas as hipóteses podem configurar semânticas possíveis no esquema de sentidos de Presa Comum. Para tal, bastaria que atentássemos na designação da sua primeira parte: Cenas de Uma Vida Conjugal. Não se tratará de uma nota de cinefilia, de modelo culturalista. Porque essa não é a inscrição deste livro, nem dos seus poemas, de uma carnalidade contida e elegante, sem qualquer afectação desse teor. Uma formulação como “parapeito da nossa vida conjugal” (p. 61) indicia a redução aos componentes mais prosaicos daquilo que pertence à esfera do sublime, ou, pelo menos, do hiperbólico. Do que se trata, nos poemas que compõem este livro, é de uma análise que nada tem de frio, nem de asséptico, de uma existência que aconteceu desenrolar-se a dois. De onde a verosimilhança de aceitar a partilha (encrespada) que o termo “comum” pode indiciar. No último poema do livro, um verso como “câmara escura do nosso passado” (p. 68) manifesta essa convivialidade sobre que parece incidir um sol poente, através do plural presente no possessivo, mas também por intermédio da certeira metáfora a ele associada. A luz mortiça que mal alumia a razão destes versos é a de uma cessação que recua e se contradiz, mas nunca por completo se contraria e converte em júbilo inteiro. Contudo, o apego destes versos à coisa concreta e ao que, não sendo da terra, nunca muito se afasta de um domínio tangível, não pode expulsar a outra possibilidade. A de que se procura o trivial. De outra forma, não seria possível o “chapinhar na poça deserta” (p. 12) que conclui um poema. Prévios à clave deliberadamente menor desse verso, os “ferros-velhos, poeiras difíceis de montar/ porcelanas riscadas arrastando a doença/ grave” não visam estabelecer um patamar de choque para o poema, mas conduzi-lo, com firmeza e uma digna feitura, ao seu terreiro. Pois é de batalhas que aqui se escreve. E não de números incontáveis de anjos em cabeças de alfinetes, ou outras. A batalha é a dos sexos. Mas não pela estrada mais concorrida. Pela mais sombria e desempedrada. Onde os pés mais ficarão doídos e onde mais nos aleijaremos ao ler.

Poucas designações seriam tão eficazes como a do tempo verbal preponderante no poema cujo incipit é “Não nos atropelamos ou matamos por acaso” (p. 24). Nele, o chamado presente histórico (essa realização da gramática que permite tornar presente o que incumbe ao passado) é um marcador do ritmo, mas é, sobretudo, uma instância de actualização e dinamismo. Mais do que o reforço do sentido, que procede do que se reitera, é a tensão quase táctil dessas circunstâncias tornadas inteligíveis pelo poema. Formas verbais como “atropelamos”, “matamos”, “atravessamos”, ou “andamos”, afirmam a saturação vivida no plural, repetida num passado tornado abstracto, concretizado num presente (gramatical e existencial) que parece girar num tapete rolante que se vai perpetuando num agora intocável.

O que era em Ruy Belo a planície de possibilidades — embora tingida de certo deleite na melancolia — de quem podia descrever-se como “homem da tarde”, é, em Frederico Pedreira, puro horror da antecipação — “esfrega-me o nariz no risco entontecido da tarde” (p. 26). O tempo que não se mede em colherinhas de café, mas em sorvos de ar raro, que enxameiam o pulmão e encharcam o poema de sobrecargas emotivas e projecções de dor. A antevisão da noite — sem se explicitar — é um dos lugares por onde passa esta poesia, e um dos seus riscos. A assunção dessa paisagem em registo de cronograma é feita de forma corajosa, mas sem estrépito — “tu sabes que nos espera esta noite” (p. 49). A noite receberá, por sinal, a descrição de “besta perplexa” (p. 64). Seguindo uma espécie de poética do não-dito, é como se o sujeito anotasse, ao voltar a casa, o anonimato de um rosto, o poço desabitado de um corpo.

Como se lia em O Artista Está Sozinho (Edição do Autor, 2013), “A escrita é inóspita, mal-educada”. No sentido em que não busca um decoro que faça dos poemas meros exercícios de virtuosismo. O que, curiosamente, não quer dizer que esse virtuosismo esteja ausente de Presa Comum. O cuidado com a forma do poema é, aliás, um dos aspectos que marcam esta poesia. O modo lucidamente intencional como o autor distribui as expansões e retracções da frase, ao longo dos versos e das estrofes — com prolongamentos de estrofe para estrofe muito pouco vulgares —, é apenas um dos indícios disso mesmo. Em versos como “A crença: tão miserável se/ agora puxar pela cabeça.” (p. 23), esta cesura que quebra o fluir da frase faz mais do que simplesmente parti-lo. Há tensões que se recriam. Há detritos biográficos, efeitos de ironia e suspensão (frásica, lógica, rítmica) que procedem destas operações ocultas.

Em poemas de consumado apuro formal, de uma contenção que se assinala com apreço (tanto maior quanto se nota o contraste com as circunstâncias tantas vezes extremas que descrevem), Frederico Pedreira assina uma poesia capaz de revolver os interstícios da convivialidade, de sujar as mãos, mas deixando o poema limpo como um bisturi pronto a usar.

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