O princípio do fim da Europa imperial

A Grande Guerra “libertou forças e ideias que desacreditaram o projecto imperial europeu e minaram a sua legitimidade”, defende o historiador Erez Manela.

Foto

Professor em Harvard, Erez Manela é um dos mais importantes historiadores da sua geração, sobretudo no domínio da História Internacional. Baseado em inúmeros arquivos nacionais e num olhar historiográfico original, o seu The Wilsonian Moment: Self-Determination and the International Origins of Anticolonial Nationalism (2007) é um excelente estudo de política comparada que revela o inesperado impacto e a imprevisível apropriação globais da doutrina wilsoniana, orientada para a constituição de uma ordem internacional democrática. Erez Manela explica como é que um político sulista, pio (presbiteriano), admirador da civilização imperial britânica, marcadamente racista, e que negava a Porto Rico e às Filipinas o que prometia oferecer ao resto do mundo sob dominação imperial e colonial, se tornou numa referência central para movimentos de emancipação política um pouco por todo o mundo, rivalizando com as promessas revolucionárias do bolchevismo.

Mais recentemente, co-editou Impérios em Guerra, 1911-1923 com Robert Gerwarth, obra traduzida (e muito bem traduzida) pela Leya/Dom Quixote e que merecerá em breve uma recensão nas páginas deste jornal. Incluindo um texto sobre o império português da autoria de Filipe Ribeiro de Meneses, este volume oferece um conjunto bastante rico de investigações que abordam “a Grande Guerra como uma guerra de sobrevivência e expansão imperial”, como referem os editores na introdução. Ou seja, no seu entender, “o paroxismo de 1914-1918 foi o epicentro de um ciclo de conflito imperial armado”.

Tal premissa exige um enquadramento analítico bastante diferente daquele que é tradicionalmente mobilizado pelas narrativas consagradas do conflito. Este conflito foi uma guerra global travada entre estados-império globais, e não entre estados-nação. Marcou ainda um momento decisivo na gradual perda de legitimidade das soluções imperiais. Como consequência, aspecto particularmente importante, as cronologias do conflito são necessariamente outras, mais amplas: o conflito, ou “ciclo de violência”, teria origem na invasão italiana da Líbia (1911) e terminaria com os conflitos em larga-escala relativos à desintegração da Rússia czarista e dos impérios otomano e austro-húngaro (1923).

Foi a propósito destas inovadoras e provocadoras propostas que conversámos com Erez Manela.

No recém publicado Impérios em Guerra, 1911-1923, que editou com Robert Gerwarth, apresentam-se argumentos convincentes para, por um lado, questionar a cronologia do conflito e, por outro, conceber o conflito como uma guerra global travada entre estados-império globais, e não estados-nação. Pode explicar porquê?
Este volume centra-se em dois argumentos. Em primeiro lugar, o de que a I Guerra Mundial foi parte de um largo e contínuo ciclo de violência que começou com a invasão italiana da Líbia, em 1911, e que não diminuiu antes de 1923. Há uma linha que pode ser traçada desde essa invasão, através da eclosão da guerra nos Balcãs, em 1912, o assassinato do arquiduque Fernando em Sarajevo, em 1914,  e depois a violência em larga-escala na Europa Oriental, Rússia, Anatólia e noutros locais, nos cinco anos seguintes ao armistício de 1918. Assim, pensamos fazer sentido ver todo este ciclo de violência com um conjunto.

E em relação ao segundo grande argumento?
O nosso segundo argumento é que a guerra deve ser vista não como um conflito entre estados-nação europeus, mas como uma guerra entre impérios globais. Há várias razões para isto. Primeiro, muitos dos combates ocorreram fora da Europa – em África, no Médio Oriente e mesmo na Ásia. Segundo, até na Europa, tropas e trabalhadores não-europeus jogaram um papel substancial na guerra. Por exemplo, os franceses recrutaram uns 200 mil tirailleurs africanos, e os Aliados ocidentais recrutaram cerca de 140 mil trabalhadores chineses que trabalharam na frente ocidental em condições muito perigosas.
Finalmente, a guerra também teve um profundo impacto em regiões fora da Europa, para lá do recrutamento de soldados e trabalhadores. Nuns casos, causou extremas dificuldades. Noutros, criou oportunidades. Na maioria das vezes originou ambos. No rescaldo do armistício, grande parte do mundo colonial estava convulsionado por insurreições e muitos dos que aí viviam pensaram que a era do império estava a terminar e que uma nova era de autodeterminação estava prestes a começar. É realmente espantoso que lugares tão distantes como o Egipto, a Índia, a China e a Coreia tenham experienciado grandes revoltas anticoloniais na Primavera de 1919.

Uma das questões potencialmente mais polémicas no debate sobre a importância histórica da I Guerra Mundial é como avaliar o seu impacto nos projectos imperiais: até que ponto poderemos olhar para a I Guerra Mundial como o início de um inevitável declínio imperial, pelo menos enquanto forma de organização política internacionalmente legítima e legitimada?
A I Guerra Mundial, e o largo ciclo de violência no qual ela se inclui, está intimamente relacionada com a desintegração dos impérios tradicionais e, mais genericamente, com a crise do imperialismo territorial enquanto princípio organizativo das relações internacionais. Afinal, a própria guerra precipitara-se por uma série de perturbações relacionadas com a desintegração dos impérios otomano e dos Habsburgos, e levou ao colapso final desses impérios assim como do russo e do alemão. Nós referimos que os impérios das potências vencedoras, particularmente a França e a Grã-Bretanha, também sofreram grandes reveses em resultado do conflito, dos quais nunca recuperaram completamente.

Em que sentido?
A questão não é simplesmente que estes impérios estavam esgotados em recursos humanos e financeiros por causa dos combates na Europa. O conflito libertou forças e ideias que desacreditaram o projecto imperial europeu e minaram a sua legitimidade. A ideia de que a civilização europeia era superior e que, por isso, a Europa tinha uma “missão civilizadora” dissipou-se. Ao mesmo tempo, o princípio da auto-determinação – pelo qual todas as nações tinham o direito de se governar a si mesmas – emergiu como um importante pilar da ordem internacional do pós-guerra, mesmo que levasse várias décadas até esse princípio ser implementado globalmente.

Essas reivindicações têm uma história mais antiga e a desagregação imperial ocorreu décadas depois do fim do conflito?
Devo frisar que reivindicações pela independência face ao poder imperial antecederam, em muito, a eclosão da guerra. Essas reivindicações foram centrais na história do hemisfério ocidental desde o final do século XVIII e fervilharam na Europa e noutros locais décadas antes de 1919. Mas o período entre 1911 e 1923 assistiu a uma dramática aceleração no processo de mudança. Não devemos esquecer que grandes revoluções começaram na China e no México em 1910-1911. Depois, tivemos a Revolução Russa de 1917; o colapso de vários grandes impérios durante a guerra; as insurreições coloniais de 1919; e processos de reconfiguração territorial na Europa oriental, no Médio Oriente e, também, em África, entre 1919 e 1923.
Claro que a completa desintegração dos impérios coloniais levou décadas – de facto, Portugal distingue-se por ter sido o último império a abandonar as suas colónias! – mas nós entendemos que o período entre 1911 e 1923 foi um ponto de viragem importante e, talvez, irreversível nesse processo.
Desequilíbrios no poder têm persistido nas relações internacionais e, provavelmente, sempre persistirão. Não é difícil conceber a antiga União Soviética como um império (de facto, um dos meus colegas de Harvard [Serhii Plokhy] acaba de publicar um livro intitulado The Last Empire, sobre os últimos dias da URSS). E muitos viram os Estados Unidos, no mundo do pós-guerra, como um império (ou mesmo, como lhe chamou Bernard Porter, um “superimpério”), apesar do termo “poder hegemónico” poder ser mais preciso. De qualquer forma, estes casos são muito diferentes dos impérios coloniais do passado. A propagação global do modelo de estado-nação soberano, um modelo que tinha um alcance limitado em 1911, produziu um tipo de mundo bem diferente daquele que então existia.

Noutro livro, The Wilsonian Moment, demonstrou a importância das ramificações globais dos idiomas políticos que emergiram em torno do Tratado de Paz de Paris. Qual foi o principal objectivo desse livro?
O meu objectivo foi tentar explicar a cadeia de insurreições anti-coloniais que ocorreram depois da guerra. Estava intrigado com o facto desses levantamentos terem irrompido ao mesmo tempo, na Primavera de 1919, em diferentes locais do mundo colonial. Queria explicar porque razão esses levantamentos acontecerem nesse momento, porque usavam linguagem e reivindicações semelhantes e, ainda, perceber o que é que eles nos podiam ensinar sobre a história internacional do período. Todos os levantamentos que trato nesse livro – no Egipto, Índia, China e Coreia – foram contra potências que haviam vencido a guerra. Foi por esse motivo que comecei a pensar que não foram apenas os impérios derrotados que sofreram em resultado da guerra.

O que é que descobriu de mais significativo?
O que descobri foi que, apesar dos inquestionáveis aspectos específicos em jogo em cada local, todos os levantamentos estavam intimamente ligados com a transformação na arena internacional da época, em particular com o surgimento do presidente americano, Woodrow Wilson, como símbolo de uma nova ordem internacional do pós-guerra, baseada no princípio da autodeterminação. Esta imagem, evidentemente, exagerou as intenções de Wilson e, mais ainda, o seu poder para mudar a ordem internacional. Nesse sentido, os levantamentos sobre os quais escrevi malograram, tendo falhado a concretização dos seus objectivos. Ao mesmo tempo, cada um constituiu um ponto de viragem crucial nas histórias dos respectivos movimentos nacionais. Eles também assinalaram uma importante mudança nas relações entre colonizadores e colonizados. Entendo que eles marcaram o início do fim da ordem imperial mundial.

Muitos jornalistas e académicos têm traçado inúmeros paralelos entre o contexto histórico que antecedeu o conflito e os actuais acontecimentos mundiais. Qual é a sua opinião sobre este debate? Quais são os “legados” da I Guerra Mundial?
Talvez o legado mais importante da guerra tenha sido a propagação global do modelo do estado-nação soberano como alternativa aos impérios multi-nacionais. Este modelo foi implantado depois da guerra na Europa oriental e no Médio Oriente, talhando novos estados e territórios das carcaças dos antigos impérios Habsburgo, otomano e russo. Mas, apesar de ter ocorrido mais tarde, a descolonização em África ou no Sudoeste Asiático seguiu o mesmo modelo de substituir formações imperiais por estados-nação, mesmo que em muitos casos as populações desses novos estados não tivessem uma única e identificável “nação”.
Também podemos ver os princípios de partilha territorial e reconfiguração, usados em 1919, continuarem a ser aplicados em subsequentes processos de descolonização e formação de estados, da Índia e África, nas décadas após a II Guerra Mundial, até Timor-Leste e o Sudão do Sul, mais recentemente. Uma lição que pode ser relevante é que as mudanças territoriais desenhadas para resolver certas dificuldades, por vezes acabam por criar um conjunto de novos e inesperados problemas. É difícil saber, com antecedência, que ajustamento territorial será mais bem sucedido, mas certamente aqueles que estão envolvidos nestas decisões deveriam ter em atenção esta longa história. Originalmente, Woodrow Wilson queria que a Sociedade das Nações tivesse o poder de ajustar fronteiras através do voto de três quartos dos seus membros. Claro que a Sociedade não recebeu esse poder. O mesmo sucedeu com as Nações Unidas. Ainda assim, a pressão para criar uma autoridade internacional acima dos estados-nação é outro legado da guerra. Este não é o conceito básico por detrás da emergência da União Europeia?
 
Miguel Bandeira Jerónimo é  investigador no ICS-ULisboa
   



 

Foto
Nicolau II, czar da Rússia, com família CORBIS
Foto
Oficiais alemães em festa, circa 1918 Archive of Modern Conflict London/REUTERS
Foto
Populares celebram Dia do Armistício Corbis
Sugerir correcção
Comentar