Era uma vez uma actriz que perdeu a memória

A partir do caso da actriz francesa Annie Girardot, Elmano Sancho e Juanita Barrera foram à procura de actores a desaparecerem da memória – a sua e a dos outros. Não Quero Morrer é um teatro de vozes fragmentadas, em que os nomes se perdem.

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Alipio Padilha

Annie Girardot, son combat contre sa maladie d’Alzheimer. Assim titulava a revista Paris Match na edição de 21 de Setembro de 2006, anunciando ao mundo que uma das actrizes fundamentais do cinema francês lutava contra o esquecimento. Já não era apenas Annie Girardot, a Nadia de Rocco e os Seus Irmãos, a mãe de Isabelle Huppert em A Pianista, a musa de Luchino Visconti e Roger Vadim progressivamente desaparecida das telas e emprateleirada num cómodo lugar histórico que começava a desvanecer-se da memória colectiva; era também a actriz a ser traída pela sua ferramenta de trabalho, a mesma que lhe falhara em 2000, em palco, quando protagonizava Madame Marguerite. E que lhe falhou cada vez mais até acabar por se esquecer que alguma vez fora actriz. A família havia de lhe esconder a suspeição do diagnóstico de Alzheimer até ter a certeza definitiva. Anos antes, numa entrevista televisiva, Girardot prometera que se alguma vez tivesse Alzheimer se atiraria da janela.

Em 2014, numa temporada de formação na SITI Company em Nova Iorque, Elmano Sancho e a bailarina colombiana Juanita Barrera haviam de assistir a Annie Girardot, Ainsi Va la Vie – “um documentário sobre os anos de solidão da carreira dela”, descreve o actor – e ficar impressionados com uma cena filmada no exterior. “Aparece uma pessoa que não sabe que estão a rodar um documentário, dá-lhe os parabéns e Annie Girardot não se lembra de quem é”, relata Elmano. Não se lembrava de si própria. “Naquele momento percebeu-se a dimensão da sua perda de memória. Começámos então a pensar sobre essa questão do esquecimento no teatro.” Eram os primeiros passos daquilo que acabaria por se transformar na peça Não Quero Morrer – que os dois apresentam no São Luiz (Lisboa, 25 a 29 de Janeiro), Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra, 31), Teatro Municipal de Vila Real (3 de Fevereiro) e Teatro Nacional de Bogotá (Colômbia, 2 a 18 de Março) –, levando-os dos problemas de memória da actriz até à forma como alguém se mantém vivo enquanto resiste na memória colectiva.

“Inicialmente queríamos tentar criar uma ficção em que a Annie Girardot voltava do mundo dos mortos para tentar reconstruir a cena final de Rocco e os Seus Irmãos, na esperança de que se evitasse a morte da sua personagem conseguisse mudar os últimos anos de vida”, conta Elmano Sancho. Rocco era uma escolha óbvia, por se tratar do filme que projectou a actriz francesa e a tornou uma das grandes estrelas do cinema europeu de então, mas também porque foi na rodagem do filme que conheceu o seu marido, o actor Renato Salvatori, às mãos do qual morria então no cinema, no trecho que agora Elmano e Juanita reproduzem em palco. É uma cena que volta como que embrulhada numa névoa, aos poucos, como se lutasse com a memória para se desenrolar até um final que, dramaticamente, mata também Annie Girardot. A morte da sua personagem essencial é como um golpe que se repete uma e outra vez – nem na ficção pôde salvar-se desse gesto que Elmano imagina ter lançado “uma maldição para o resto da sua vida”.

Um equívoco

A cena capital do Rocco e os Seus Irmãos emerge várias vezes em Não Quero Morrer e interrompe os discursos fragmentados que compõem o miolo da peça. A partir da história de Girardot, Elmano e Juanita, em Portugal e na Colômbia, foram à procura de actores igualmente esquecidos no seu final de carreira, em apagamento acelerado da sua marca no teatro ou no cinema. Em palco, ouvimos excertos das entrevistas que os dois conduziram, recriados pelo actor, mas sem que os nomes dos confidentes alguma vez sejam explicitados. Esses nomes não existem porque a tentativa de criar “um espaço em que eles voltassem a existir de alguma forma, através do nosso corpo e da nossa voz”, é assumidamente falhada. Elmano e Juanita não estão a tentar corrigir uma injustiça. Estão a dar-lhe eco. Não estão a vigarizar a verdade. Estão a mostrá-la sem artifícios. “O nosso propósito é relembrá-los, só que estamos desde o início a dizer que não há possibilidade nenhuma de os recordar.”

Quando Elmano fala de “nosso corpo” e “nossa voz”, fá-lo dessa forma porque a presença dos dois em palco funciona, quase sempre, como se fosse uma só, como se um encarnasse a memória do texto e outro a memória corporal de uma única personagem que junta todos os entrevistados. E isto porque, com o avolumar de entrevistas, foram concluindo que “quase todas podiam ser da mesma pessoa, ainda que com as suas variações”. “Fizemos perguntas sobre o teatro, sobre o cinema, sobre a vida profissional, mas quase sempre nos respondiam com o lado pessoal, como se houvesse uma recusa daquele passado”, conta Elmano. Depois, um discurso recorrente, comum, sobre o envelhecimento, a degradação do corpo, as histórias que envolviam o pai ou a mãe. Ao confrontarem-se com estes relatos, Elmano e Juanita consciencializavam-se também do seu futuro – “Tínhamos 35 anos na altura e achámos que esta era a melhor forma de marcar essa transição entre a juventude e o início do envelhecimento.”

O encadeamento de vozes que se furtam a um reconhecimento final, com distinções mínimas para o espectador entre homem ou mulher, sem circunstâncias concretas de carreira ou dos locais de origem que permitam a sua identificação, reforçam um jorro narrativo fragmentado que resulta num teatro de vozes – algo que já nos habituámos a ver quase soterrar as personagens de Elmano Sancho. Desde que Jorge Silva Melo o escolheu para o monólogo Herodíades e o colocou no encalço de Enda Walsh (outro monólogo, Misterman, primeira encenação do actor), Elmano deu por si num caminho feito de figuras entregues à solidão e habitadas por um murmúrio constante de vozes que não se calam e soam a um tormento constante.

Em Não Quero Morrer, uma dessas vozes é especialmente desconcertante. A de uma mulher que, tal como Girardot, já custa a acreditar que alguma vez tenha sido actriz. Usou sempre um nome artístico, todos assim a chamavam, todos assim a esqueceram e o nome, postiço mas cheio de uma vida, caiu de velho, descolou-se da sua pele, foi pisado por pés indiferentes e perdeu-se. Agora, chamam-lhe Odete, o seu verdadeiro nome. E é como se fosse um equívoco. Como se toda a sua vida, afinal, fosse um equívoco.

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