A queda de uma das curadoras de arte mais importantes do mundo

Marion True tinha uma carreira invejável: era uma das mais poderosas, respeitadas e requisitadas historiadoras de arte do mundo. Foi acusada de pertencer a uma rede que negociava arte antiga. Agora, quer contar a sua história

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Os repórteres perseguiram-na. Os investigadores acusaram-na de conspirar com negociantes sem escrúpulos. E os colegas de museu pareciam satisfeitos com o seu desaparecimento, como se uma das mais poderosas, respeitadas e requisitadas historiadoras de arte do mundo merecesse ser a única curadora americana a ser levada a tribunal.

Há dez anos, Marion True, curadora de antiguidades do Museu Paul Getty em Los Angeles — o museu mais rico em todo o mundo —, foi formalmente acusada por Itália de pertencer a uma rede que negociava arte roubada. Em poucos meses, perderia o trabalho, a carreira e deixaria o país. Em tempos uma curadora tão cobiçada que chegou a recusar um convite do Metropolitan Museum of Art, True desapareceu tão completamente que o seu antigo patrão, Barry Munitz, admitiu numa entrevista dada este Verão que não tinha ideia “onde ela estava ou o que estava a fazer”.

J. Michael Padgett, o curador de arte antiga do Museu da Universidade de Princeton, falou dela no passado quando foi abordado num jantar recente de celebração do antigo negociante de arte Robert Hecht, que foi processado juntamente com True. “Ela era um símbolo”, afirmou. “E morreu pelos outros.”

Só que Marion True está bem viva e agora, pela primeira vez em anos, aceitou falar sobre o seu exílio profissional. E, surpreendentemente, True escreveu centenas de páginas do que poderá vir a ser o seu livro de memórias, um rascunho que partilhou com o Washington Post.

Uma década depois da sua queda, True sabe que foi visada por Itália, juntamente com Hecht, para despertar medo nos museus americanos. A estratégia funcionou. O Getty e os outros, receando ser alvo de acções judiciais, devolveram centenas de objectos no valor de milhões de dólares. 

True nunca foi condenada — o processo foi arquivado em 2010 sem nunca ter ido a julgamento — e a curadora insiste na sua inocência. Mas agora, pela primeira vez, fala abertamente sobre a forma como ela e os seus colegas do mundo dos museus trabalhavam. Sim, ela recomendou que o Guetty comprasse obras que ela sabia que tinham sido saqueadas. Mas admite-o com uma ressalva: Se soubesse de onde a obra tinha sido levada faria pressão para que fosse devolvida. Pelo contrário, muitos dos seus colegas pouco fizeram, se chegaram a fazer alguma coisa, para pesquisar a origem das obras. E nenhum deles foi acusado.

O processo contra True foi catalisado por buscas a negociantes e uma fuga maciça de documentos internos do Getty obtidos por dois repórteres do Los Angeles Times. O jornal conseguiu fazer a ligação entre locais saqueados em Itália e as galerias do museu de Malibu. 
O agora reformado procurador italiano Paolo Ferri, contactado recentemente, admite que nunca imaginou que True viesse a ser presa. “Ela foi acusada por uma única razão”, afirmou. “Mostrar aquilo que Itália conseguia fazer.”

Nas suas memórias por publicar, True traça a sua ascensão desde uma família de classe operária de Newburyport, no Massachusetts, até ao universo misterioso e aventureiro da arte antiga e, finalmente, a uma sala de audiências em Itália. E oferece um raro olhar sobre as relações demasiado próximas entre museus, negociantes e coleccionadores. Descreve também o absurdo da sua acusação. Porque mesmo os seus detractores conheciam os seus esforços para criar regras para uma profissão que, durante décadas, funcionou segundo os padrões de um corretor de junk bonds da bolsa de Wall Street na década de 1980.  

O caso contra True, coberto com grande alarido no seu início, dissipou-se de forma discreta.

“Compreendo por que é que os italianos fizeram o que fizeram”, diz True, agora com 66 anos, numa de várias entrevistas em Newburyport, onde mantém um modesto apartamento, num terceiro andar sem elevador, que lhe permite continuar a visitar a sua mãe de 91 anos. “Foi muito inteligente e muito cruel, mas pelo menos percebo o porquê. O que nunca consegui compreender foi por que é que os museus americanos fizeram o que fizeram. E por que é que os meus colegas e patrões nunca, mas nunca, me defenderam. Agiram como se eu tivesse feito tudo aquilo por minha iniciativa, o que teria sido impossível. Simplesmente evaporaram-se.”

John Walsh, antigo director do Getty, contactado este Verão, disse ter testemunhado para explicar por que é que True, enquanto curadora, não deveria ter sido responsabilizada pelas aquisições do museu. Essas compras foram efectuadas pelos administradores e a direcção do museu. Mas esta defesa pessoal não serve de conforto a True. Sublinha que publicamente o Getty lhe deu pouco apoio.

“Acho que ninguém veio dar a cara”, diz Max Anderson, o director do Museu de Arte de Dallas. “A acusação de que foi alvo foi um choque para o sistema. Toda a gente estava preocupada com o seu próprio destino. Não me parece que tenha sido um momento alto desta profissão.”

A manhã já vai adiantada e True acaba de saber de uma festa de lançamento, num restaurante turco em Nova Iorque, para celebrar a publicação das memórias de Hecht.  Ele era uma figura impetuosa e lendária, que se apresentava como um “pirata” durante as décadas em que se dedicou a vender arte antiga aos museus, mesmo quando havia razões para acreditar que as obras tinham sido saqueadas.

Ela está a tentar processar a ideia de que o homem que foi acusado tal como ela está agora a ser homenageado com vinho tinto, kebabs e calamares pelo círculo de curadores a quem um dia chamou colegas. “Até Bob Hecht sai disto com a publicação de um livro”, diz.

Em pessoa, True é calorosa, engraçada e capaz de conversar sobre qualquer assunto, desde os Beatles à forma correcta de cultivar peónias. Vive a maior parte do tempo em França com o marido, um professor de Arquitectura reformado. Mas o seu tom muda quando a conversa se desloca para Getty. Palavras impublicáveis voam. As lágrimas vêm à tona.

A Villa Getty, com os seus jardins luxuriantes, o seu teatro ao ar livre e as suas galerias sobre o oceano Pacífico, em Malibu, foi construída para recriar a imagem de uma casa da Roma do século I. A renovação da mansão foi o trabalho da sua vida, um projecto de oito anos e 275 milhões de dólares que abriu ao público em 2006. Foi a principal razão pela qual True recusou o convite do Met para a direcção de antiguidades. 

True escreveu literalmente o livro da Villa, uma edição de capa dura vendida por 39,95 dólares na loja do museu. A sua demissão forçada, em Outubro de 2005, aconteceu no meio do caso das antiguidades, mas oficialmente a razão foi uma falha ética que ela lamenta: ter pedido dinheiro (com juros de 8,5%) para comprar uma segunda casa aos conhecidos mecenas de museus Larry e Barbara Fleischman. “Eu era uma pessoa muito feliz”, diz, olhando para baixo e começando a chorar. “Pensei que era boa naquilo que fazia. Adorava aquilo que fazia. Mas quando sabemos que não podemos continuar a fazê-lo, então é o fim.”

Será então uma boa ideia escrever um livro? Até os seus amigos mais próximos se interrogam.

“Não é um daqueles casos em que estamos a falar de algo ainda em curso”, diz Karen Manchester, curadora de arte antiga no Art Institute of Chicago.

Mas ela começa a falar da influência de True, como ela foi a sua mentora quando era uma jovem curadora no Getty na década de 1980, aconselhando-a sobre como se vestir de forma profissional ou como lidar com os coleccionadores abastados. Na década de 1990, ela olhava para True como uma líder, quando testemunhava em Washington ou falava regularmente em conferências de museus sobre a necessidade de normas mais estritas para a angariação de obras de arte. Um trabalho que por vezes enfurecia colegas de outros museus.

“Sempre desejei e sempre pensei nela como uma Fénix que renasce das cinzas”, diz Manchester. “Que continuaria a haver um lugar para ela como uma das principais vozes neste campo. Ela ainda tem tanto para dar.”

Vartan Gregorian, antigo presidente da Universidade Brown que agora preside à Carnegie Corporation de Nova Iorque, acredita que o livro dará a True algo que ela nunca conseguiria num julgamento: uma hipótese de se defender como deve ser. “Eu disse-lhe: ‘Se não escreveres a tua história, outros vão fazê-lo’”, diz Gregorian.

Até agora, muita da história de True foi cedida aos antigos jornalistas do LA Times Jason Felch e Ralph Frammolino. Os dois basearam-se em entrevistas e fugas de documentos do Getty para escrever o seu livro de 2011, Chasing Aphrodite: The Hunt for Looted Antiquities at the World’s Richest Museum (Em Busca de Afrodite: À Caça de Antiguidades Saqueadas no Museu Mais Rico do Mundo). Apesar de já não estar no jornal, Felch mantém um site do livro. Em 2011, depois de os críticos os terem acusado de tratar True com demasiada severidade, os autores publicaram uma resposta, sublinhando que sete em cada dez leitores do seu site “pensam que ela era culpada de traficar antiguidades saqueadas”. 

Este Verão, True pronunciou, pela primeira vez, algo próximo de uma confissão. Insiste que não conspirou com uma rede de tráfico ilegal, como alegam os procuradores italianos. Mas diz ter adquirido arte para o Getty que sabia que tinha sido roubada. Por que não o faria? Ela está por todo o lado. “A arte está no mercado”, afirma, descrevendo a política de aquisição do Getty. “Não sabemos de onde vem. E até sabermos de onde vem, é melhor estar na colecção de um museu. E quando soubermos de onde vem, iremos entregá-la.”

A última afirmação, sublinha, é importante. Outros curadores preocupam-se pouco em saber de onde veio uma escultura ou pintura quando concorrem para a comprar. Mas True diz que sempre que descobriu a origem de uma obra saqueada, o local de onde ela veio, o Getty devolveu-a. Não foi assim com dois dos mais proeminentes coleccionadores da sua era, homens com quem estudou: Cornelius Vermeule, do Museum of Fine Arts, em Boston, e Dietrich von Bothmer, do Met. 

Em 1972, Bothmer fez pressão para o Met comprar um vaso do século VI a.C. por um milhão de dólares, mesmo quando, recorda True, ele lhe contou sobre o túmulo etrusco do qual tinha sido roubado. Confrontado com isto, o museu foi obrigado a devolver a Cratera de Euphronios a Itália, em 2006. 

Vermeule adquiriu em tempos a parte superior de uma estátua grega, conhecida como Hércules Cansado, apesar de a metade inferior do corpo estar em exibição num museu da Turquia. No entanto, Vermeule insistia publicamente em 1990 que ele não tinha forma de saber que as duas metades, tão obviamente ligadas, estiveram em tempos unidas. Em 2011, três anos após a sua morte, o Museum of Fine Arts entregou a sua metade à Turquia.

Os curadores eram ambos próximos de Hecht, que vendeu a Cratera de Euphronios ao Met. E era natural que Hecht, que conheceu True através de Vermeule no início da década de 1970, contasse o Getty entre um dos seus melhores clientes.

Ferri, o agora reformado procurador italiano, acredita que Vermeule e  Bothmer — tal como os antigos directores do Getty John Walsh e Deborah Gribbon — mereciam tanto ser acusados como True. Mas as informações que ele tinha sobre ela, afirma, eram frescas.

True chegou ao Getty como curadora assistente em 1982, um dia que ela recorda ao ponto de se lembrar da roupa que usava (“o meu melhor fato francês e uma blusa de seda às riscas”) e o seu salário inicial, de 14.500 dólares. Foi lá que encontrou Jiri Frel, um antigo curador do Met que tinha construído a colecção do Getty durante os anos 1970. O Getty não tinha a história do Met ou do Museum of Fine Arts. Mas tinha dinheiro.

Fundado pelo industrial americano John Paul Getty, a villa original abriu em 1974. Getty nunca a chegou a ver. Morreu em 1976 quando estava em Inglaterra, deixando ao museu 1200 milhões de dólares.

Mesmo com esse dinheiro disponível, Frel trabalhava como uma casa de apostas num fim-de-semana na Super Bowl. “Quebrava todas as regras”, diz Sally Hibbard, responsável pelos registos de Getty durante décadas até à reforma, em 2014. “Ele levava coisas às escondidas para o museu à noite, mesmo quando eu não estava lá. Vinha do antigo bloco soviético e para ele essa era a forma como vivia.” 

Frel atraía os mecenas inflacionando os valores das obras de arte para que eles arrecadassem mais benefícios fiscais. Forjava documentos para criar histórias falsas para as peças que comprava. Afastado em 1984, deixou para trás obras que, duas décadas mais tarde, iriam terminar na lista de exigências de Ferri. Uma trapalhada que Marion True herdou. 

Numa fria noite de Inverno, um vestígio desta geração de curadores juntou-se num restaurante turco para brindar a Hecht. O coleccionador morreu em 2012, com 92 anos. A sua mulher, Elizabeth, recrutou o coleccionador de moedas e membro da família Corning Glass, Arthur Houghton, que foi curador do Getty na década de 1980, para escrever um longo prefácio para as memórias. A edição, de capa dura, não chega a ter 70 páginas. Hecht, proibido de entrar em vários países por causa dos seus negócios antigos, deixou uma carta aberta destinada a explicar o seu principal argumento em relação às antiguidades. Ele não traficava obras roubadas. Ele “resgatava” arte enviando-a para grandes museus. 

True conhecia a maior parte dos presentes: Jasper Gaunt, curador de arte antiga no Museu Michael C. Carlos da Universidade Emory; o antigo curador do Museu de Arte de Cleveland Arielle Kozloff; Padgett, do Museu da Universidade de Princeton. Houghton manteve-se à cabeceira, fazendo brindes ao conhecido negociador de arte roubada. No seu prefácio, descreve-o como um “aventureiro e pirata”, cuja vida foi “uma série de negociatas, de jogadas audazes para comprar e vender arte antiga” aos que “sabiam como furtar-se ao longo braço da autoridade”. 
“Tenho de ser muito honesta”, diz mais tarde True sobre o jantar. “Teria adorado ir porque penso que os teria chocado.” Mas ela evitou a festa, tal como evita as secções clássicas dos museus de arte. E enquanto pensa na sua vida em França, feita de jardinagem, culinária, família e gatos, começa a pensar que as suas memórias podem ser mais uma coisa para deixar para trás.

No último Outono, True inclinava-se para transformar o manuscrito e enviá-lo a uma editora. Este Verão, está reticente. “Senti que tinha de escrever, na minha perspectiva, como uma forma de catarse”, diz. “Mas tenho estado a pensar. Será que quero publicar um livro e voltar a pôr a minha vida de pernas para o ar? Não sei se vale a pena. Não sei.”
 
Exclusivo
PÚBLICO/The Washington Post

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