Era outra vez o cinema?

Mais de 20 anos passados sobre a morte de Satyajit Ray, seis dos seus filmes maiores, alguns dos quais nunca anteriormente exibidos em Portugal, chegam ao Espaço Nimas, em Lisboa, com aura de acontecimento. Antes deste houve outros – os 27 mil espectadores de Ingmar Bergman, os 19 mil de Yasujiro Ozu (e a passadeira vermelha continua a desenrolar-se: segue-se, em Fevereiro de 2015, Roberto Rossellini)… Era um cinema que podia estar morto – e no entanto move-se. Mas mais alguma coisa se move com ele?

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27 mil espectadores regressaram a uma figura totémica da cinefilia
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Um ano depois de "Viagem a Tóquio" e "O Gosto do Saké", de novo um acontecimento: três filmes tardios do japonês: "Bom Dia", "A Flor do Equinócio" e "O Fim do Outono"
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"A Desaparecida" é uma das atracções de um novo cinema de bairro: o Ideal
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Em Fevereiro de 2015, 10 títulos do realizador de "Roma Cidade Aberta"

É uma manhã japonesa de 1959 – uma manhã depois da bomba atómica, depois dos americanos, depois da televisão. Os miúdos na escola, os maridos no emprego, as mulheres na cozinha, e entretanto um caso de polícia (uns quantos ienes desaparecidos, talvez reencarnados na máquina de lavar a roupa da vizinha do lado) que talvez o cinema possa resolver:

– Não se preocupe, o tempo dirá quem é o culpado… Como naquele filme, lembram-se?

É só um filme – um filme que uns quantos milhares de espectadores distribuídos entre o Espaço Nimas, em Lisboa, e o Teatro do Campo Alegre, no Porto, viram ou reviram neste Verão em que a Medeia Filmes voltou a fazer acontecer Yasujiro Ozu (1903-1963), agora a cores, em três filmes tardios do cineasta japonês: Bom Dia, A Flor do Equinócio e O Fim do Outono (há exactamente um ano, tinha havido uma primeira experiência com Viagem a Tóquio e O Gosto do Saké: 10.865 espectadores). E sim, alguns deles lembram-se – do tempo em que ir ao cinema não era um acontecimento, era um hábito (semanal, nalguns casos até diário) aparentemente imortal.

Entretanto, claro, o cinema morreu. Já tinha morrido antes com o som, com a cor, com a televisão, e voltou a morrer depois com o VHS, com o DVD, com a Internet. Desta vez, as notícias da sua morte não foram assim tão exageradas: nos últimos dez anos, o número de entradas nas salas de cinema em Portugal diminuiu 27% (só entre 2012 e 2013 perderam-se mais de um milhão de espectadores e 8,5 milhões de euros em receitas). E no entanto um filme como o recém-estreado Os Maias, de João Botelho, ultrapassou esta semana os 40 mil espectadores – e eis que outro cinema que podia estar morto, o do indiano Satyajit Ray (1921-1992), chegou ontem, com aura de acontecimento da temporada, ao Nimas, onde seis dos seus filmes maiores serão exibidos até 5 de Novembro (no Porto, o ciclo decorrerá de 30 de Outubro a 19 de Novembro). Antes dele, outros acontecimentos: os 19 mil espectadores das duas operações Ozu (números provisórios, a que faltava acrescentar a última semana de exibições, já extra-calendário, no Teatro do Campo Alegre), e sobretudo os 27 mil espectadores do ciclo Ingmar Bergman, mais tudo o que se disse dele antes, durante e depois dessas sessões esgotadas, e não só por Bergman ser Bergman (a mais “totémica” figura do cinema europeu da segunda metade do século XX, “uma imponên­cia que o espec­ta­dor tinha de ten­tar vencer, como se dobrasse o Bojador, se que­ria ser chamado de espec­ta­dor”, para citar uma crónica que esse ciclo fez acontecer neste suplemento). Disse-se, por exemplo, que essas sessões esgotadas pareceram poder restaurar um tempo, o da cinefilia compulsiva, doentia, das décadas de 60 e de 70, e uma geografia, a dos cinemas de bairro, que só muitos anos depois começariam a esvaziar-se, quando as cidades foram morar para os subúrbios e os cinemas foram morar (e comer pipocas) para os centros comerciais.

Como naquele filme, lembram-se?, o tempo dirá quem foi o culpado.

A excepção e a regra
Apesar de tudo o que o torna irrepetível, talvez não seja difícil replicar os números do ciclo de Ingmar Bergman – agora com Satyajit Ray, daqui a uns meses (a partir de Fevereiro de 2015) com Roberto Rossellini, outra figura bastante totémica na pequena história da cinefilia portuguesa, de que a Medeia Filmes exibirá dez títulos (a sua vinda a Lisboa em Novembro de 1973 para apresentar Roma, Cidade Aberta também fez acontecer muita coisa: “Quando apareceu na tela a palavra ‘fim’, a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me recordo em sessões de cinema. No palco, Rossellini […] esperou dez minutos (não exagero) antes de conseguir agradecer. Dez minutos em que os ‘bravo’ deram lugar a distintíssimos brados do género: ‘Abaixo o fascismo’ ou ‘Liberdade, liberdade’. Ministros e altas entidades escaparam-se discretamente pela direita baixa, muitos deles pessoalmente interpelados […]. À saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará”, lembraria muitos anos mais tarde João Bénard da Costa).

O que parece mais difícil é fazer do acontecimento numa prática normal, transponível para as sessões regulares do circuito comercial – como se no final de cada ciclo estes espectadores desaparecessem, e apenas ponderassem voltar a entrar numa sala noutra ocasião excepcional.

É verdade e é mentira, diz ao Ípsilon Paulo Branco, que acredita que “há público que se forma” nestas sessões. “O trabalho de um exibidor é transformar cada um dos seus filmes num acontecimento especial, porque o público tem de vir – e enquanto o exibidor tiver meios e imaginação para isso, o público vem. No meu caso, sempre achei importante conciliar o trabalho em torno do cinema contemporâneo com o trabalho em torno da memória do cinema; o sucesso dos ciclos que organizámos com o Ozu e com o Bergman vem na sequência de boas experiências anteriores com reposições de clássicos em cópias restauradas (o Vontade Indómita, do King Vidor, a filmografia do Jacques Tati, por exemplo) que nos permitiram depois correr riscos com outros filmes”, explica.

Apesar de todos os sinais de deserção dos espectadores, nunca teve dúvidas de que estes filmes, em muitos casos fantasmas de um cinema bastante passado, encontrariam o seu público. Mas, admite, um ciclo como este que reuniu 17 filmes de Ingmar Bergman demorou “quatro anos a preparar” e foi “um investimento financeiro arriscado” – com retorno. “Ao contrário do que acontece nos festivais, em que o consumo de filmes é rápido e a digestão é mais rápida ainda, estes acontecimentos deixam memória. Durante três meses não se falou se não do Bergman. Como os filmes não passam só uma vez, as pessoas têm tempo para ver, para discutir, para rever. E eu como exibidor beneficio dessa atenção concentrada, também no mercado do DVD e na relação com as televisões, que eventualmente acabarão por se interessar e quererão comprar os filmes. Não nos esqueçamos: isto é uma actividade comercial. Mas continuamos a vender filmes e não pipocas ou assinaturas de televisão por cabo, ao contrário de 90% da distribuição em Portugal. Isso sim, destruiu o tecido da cinefilia.”

Parece uma palavra fora de uso. Mesmo para Ricardo Vieira Lisboa, 20 e tantos anos, um dos colaboradores fixos do blogue À Pala de Walsh: “É evidente que há uma mudança. Nos últimos anos, parece que passou finalmente a haver um mercado (eu diria até um filão) para o cinema de reposição em Portugal. Se isso corresponde ao regresso de uma prática da cinefilia e a um regresso às salas já duvido. É certo que há uma componente simbólica na experiência de regressar ao Bergman numa sala de cinema onde em tempos passaram os filmes do Bergman. Mas antigamente, o cinema do Bergman era um cinema popular; hoje é um evento que dura umas semanas. Caso contrário, estes números excepcionais aconteceriam na Cinemateca, que tem justamente como missão mostrar este cinema e o faz há décadas”, argumenta.

Não é nas salas que está a cinefilia, concorda – mas também não é na Internet. “No À Pala de Walsh sentimo-nos um bocado sozinhos, não há muito mais pessoas em Portugal a escrever sobre os filmes que não estão no circuito comercial: 90% da blogosfera está virada para as estreias, para os blockbusters. Por outro lado, o Facebook matou a blogosfera: é um meio dado ao clique, não à reflexão. Mas também não é por aí que morre a cinefilia: digamos que a cinefilia da blogosfera era mais reflexiva e que a do Facebook é mais psicadélica. Tal como no resto do mundo, aliás, a cinefilia em Portugal é profundamente dependente da Internet: nasce, cresce e desenvolve-se à base de torrents. Nisso ciclos como estes continuam a poder desempenhar uma missão crucial: como há tanto por onde escolher, podem organizar a oferta, dar ao espectador um critério a que possa agarrar-se.”

A 300 quilómetros de distância, no Porto, é nisso que tem trabalhado David Pinho Barros – como espectador, como programador (foi co-responsável pelo ciclo Dos Livros no Cinema, que terminou no último domingo) e como docente (tem leccionado vários cursos livres de cinema na Universidade do Porto: o próximo, Cinema e Intervenção, começa em Outubro e vai de Eisenstein a Jia Zhang-Ke). “É muito mais difícil trabalhar os espectadores agora. Há 30 anos para ver cinema tinha de se ir ao cinema. Hoje para se ver cinema há o streaming, o pay-per-view, o DVD, o Blu-ray… Mas é precisamente esse contexto que explica o sucesso de fenómenos como os ciclos Bergman e Ozu: o cinema transformou-se num happening, num espectáculo. Os filmes resultam muito melhor como acontecimentos esporádicos do que inseridos num circuito de exibição regular. E é por isso que há cada vez mais sessões com apresentações ou debates, ou que mostram um trabalho prévio de construção autoral: para um espectador sair de casa, é preciso haver um elemento qualquer que acrescente densidade e excepcionalidade ao filme em si”, diz. Paralelamente, acrescenta, há todo um circuito comercial que não beneficia necessariamente destes picos de procura – e que, no caso particular do Porto, não tem sequer a diversidade mínima que, apesar da sua reduzida escala, o circuito da exibição independente vai conseguindo assegurar (e que a agenda mensal entretanto criada pela Câmara Municipal finalmente sistematizou, compilando no mesmo suporte as actividades dispersas do Cineclube, da associação Milímetro e do futuro festival Porto.Post.Doc).

Nestas condições, reconhece David Pinho Barros, é muito difícil acreditar que o Porto possa voltar a ter uma sala de cinema de bairro a funcionar regularmente, com várias sessões diárias – “tem a ver com mecanismos sociais e individuais associados às práticas correntes da ida ao cinema”. Mesmo que, em Lisboa, um caso exemplar como o do Cinema Ideal, muito recentemente reaberto no coração do Bairro Alto, possa alimentar sonhos do tipo “if you build it, they will come”. Pedro Borges, da Midas Filmes, tem visto muita gente aparecer: 896 espectadores na primeira semana, 1120 na segunda, 1431 na terceira… Não o surpreende que venham porque continua a defender que os cinemas de bairro fecharam não por falta de espectadores mas por efeito da especulação imobiliária: “Os espectadores não desertaram, foram expulsos. E também houve laxismo na defesa dos cinemas como espaços vitais para uma cidade, que não devem ser selvaticamente apropriados e destinados a outros fins. É claro que os espectadores de cinema caíram em todo o mundo, mas se houver salas onde se possam ver filmes como deve ser as pessoas vêm.” O problema é que equipar uma sala “como deve ser” é um “enorme investimento financeiro”, para o qual não existe qualquer política pública de financiamento. Tal como programar um cinema “365 dias por ano” não é exactamente igual a organizar um ciclo de um ou dois meses: “Resultou, foi uma belíssima ideia. Se é um caminho para fazer ressurgir as salas não sei. Parece-me que é acentuar a festivalização do cinema: são acontecimentos que duram umas semanas, mas e depois?”

O tempo dirá.

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