Equipa do Museu do Cinema de Moscovo demite-se em bloco

Cineastas de todo o mundo receiam que esteja ameaçada a salvaguarda do grande património fílmico russo e apelam ao ministro da Cultura de Vladimir Putin para recolocar em funções o prestigiado director histórico do museu, Naum Kleiman.

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Dezenas de realizadores, críticos de cinema e programadores de todo o mundo solidarizaram-se já com o histórico director do Museu Nacional do Cinema de Moscovo, Naum Kleiman, que se demitiu, com toda a sua equipa, afirmando que se tornara insustentável trabalhar sob as ordens da nova responsável do museu, nomeada pelo ministro da Cultura Vladimir Medinski, Larissa Solonitsyna.

Especialista na obra de Sergei Eisenstein e grande divulgador do cinema russo no mundo, Kleiman dirigiu o Museu do Cinema durante 25 anos, até que, em Julho passado, o ministro da Cultura do governo de Vladimir Putin nomeou para o seu lugar, sem qualquer concurso prévio, a até então chefe de redacção do jornal SK Novosti, órgão da União dos Cineastas da Rússia. Para Kleiman foi então criado o cargo honorífico de presidente do museu.

No dia 27 de Outubro, os 22 especialistas que compunham a equipa do museu – conservadores, arquivistas, programadores – pediram a sua demissão à actual directora e escreveram ao ministro da Cultura, afirmando que se demitiam por ser “impossível prosseguir o trabalho com a nova direcção”. Num “apelo aos colegas cineastas e profissionais de museus Rússia e do mundo inteiro”, assinado por toda a equipa e divulgado através da internet, manifestam também o receio de que a verdadeira intenção do governo seja fechar pura e simplesmente o Museu do Cinema, já que o Ministério da Cultura destacou para assessorar Larissa Solonitsyna um advogado que, segundo os signatários, é “especialista em liquidação de empresas”.

O apelo de Kleiman não caiu em saco roto e, no dia 30, o director do Instituto Lumière e do Festival de Cannes, Thierry Fremaux, o realizador e crítico de cinema irlandês Mark Cousins e a actriz inglesa Tilda Swinton enviaram uma carta aberta ao ministro da Cultura russo, elogiando o trabalho de Kleiman e pedindo-lhe que reconsiderasse a sua decisão de o substituir na liderança do Museu do Cinema.

“Como em 1968, quando cineastas tão diferentes como Orson Welles ou Carl Theodor Dreyer escreveram ao governo francês a protestar contra a demissão de Henri Langlois [co-fundador e director da Cinemateca francesa, que o escritor André Malraux, então ministro da Cultura, tentou afastar] queremos dizer que este Museu do Cinema não é só vosso, também é nosso, e que nós confiamos em Kleiman e na sua equipa”, escrevem ainda os três signatários.

A sua carta, publicada no site da revista Sight & Sound, foi já subscrita por largas dezenas de cineastas e outros profissionais do cinema de vários continentes, incluindo alguns portugueses, como os realizadores Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Joaquim Pinto, Nuno Leonel, Rita Azevedo Gomes e Carlos Conceição, os produtores Luís Urbano, Joana Gusmão e Pedro Fernandes Duarte, ou os críticos Augusto M. Seabra e Jorge Mourinha.

A Sight & Sound tem ainda publicado várias mensagens de solidariedade enviadas a Kleiman, como a que lhe foi endereçada pela direcção da APORDOC, a Associação pelo Documentário, responsável pelo DocLisboa. A primeira dessas mensagens é assinada por Eva Truffaut, filha do realizador de Os Quatrocentos Golpes ou A Mulher do Lado, que elogia o modo como Kleiman foi capaz de “estabelecer um diálogo essencial entre os realizadores clássicos e modernos”, divulgando “obras tão singulares” como as de Eisenstein, Boris Barnet, Ozu, Rohmer ou do próprio François Truffaut, a quem dedicou uma importante retrospectiva em Moscovo.

“Hoje, nós, gente do cinema, das artes, das letras e da cultura de França estamos consternados por saber da sua demissão, quando os cineastas e o público precisam, mais do que nunca, do seu entusiasmo sem paralelo e da sua insubstituível competência”, escreve ainda a filha de François Truffaut.

Vandalismo cultural

No seu apelo público, Kleiman e respectiva equipa explicam que começaram por acolher sem qualquer hostilidade a nova directora, que “era jovem, parecia dinâmica, e tinha formação em história do cinema”. Mas decorridos apenas três meses, toda a equipa do museu já se tinha incompatibilizado com Larissa Solonitsyna e, em meados de Outubro, dera conhecimento da situação, “numa declaração sem ambiguidades”, ao responsável pelo património no ministério da Cultura, Mikhail Bryzgalov, e a um conselheiro cultural de Putin, Vladimir Tolstoi.

A nova directora mostrava “falta de competência” e um “estilo de gestão autoritário”, acusam os técnicos do museu que agora se demitiram em bloco. Sem ter a menor experiência ou ter tentado familiarizar-se com as metodologias do museu, “permitia-se lançar dúvidas injustificadas e insultuosas a respeito do carácter científico do nosso trabalho”, acusam.

Solonitsyna, adiantam, terá ainda tentado despedir “os funcionários que julgava indesejáveis, sem apresentar quaisquer motivos de ordem profissional e propondo-lhes que fossem eles próprios a demitir-se por ‘razões pessoais’”.

No próprio dia em que a equipa do museu escreveu ao ministro da Cultura, a directora começou a despedir funcionários, tendo Naum Kleiman sido um dos primeiros dispensados. Solonitsyna terá tentado persuadir outros a retirar o pedido de demissão, mas nenhum cedeu. No final do mesmo dia, o Ministério da Cultura divulgava, através da agência noticiosa Interfax, um texto em que o museu era acusado de alegadas irregularidades, todas elas, garantem os signatários deste apelo, há muito devidamente esclarecidas junto da tutela, que aceitou os esclarecimentos sem reservas. Estas notícias, dizem, “têm o propósito evidente de denegrir o anterior director do museu e a sua equipa”.

O documento termina lembrando que não é esta a primeira vez que o Museu do Cinema está ameaçado de destruição e apelando “aos que não são indiferentes ao destino do património cinematográfico” russo para “ajudarem a não admitir este vandalismo cultural”.

Esta aparente tentativa de desmantelar o Museu do Cinema está ser vista como mais uma iniciativas do governo de Putin contra os meios artísticos e a liberdade de criação. Em Maio, assinara uma lei estipulando que os palavrões passavam a ser proibidos em filmes, espectáculos teatrais e programas televisivos. E os livros que os contenham são agora obrigados a ostentar na capa o aviso de que incluem conteúdo grosseiro.

Outro alvo recente desta cruzada censória são os manuais escolares russos: livros que vinham sendo usados há mais de uma década foram agora banidos do ensino por não estimularem suficientemente o “espírito patriótico”.

No caso do Museu do Cinema, há ainda a registar a amarga ironia de que a responsável directa pela demissão de Kleiman e da sua equipa, Larissa Solonitsyna, é nada menos do que a filha do grande actor russo Anatoly Solonitsyn, especialmente conhecido pela sucessão de papéis principais que interpretou em filmes de Andrei Tarkovski, o realizador de Andrei Rublev e Stalker, que dificilmente se contará entre as predilecções cinéfilas do apreciador de desportos radicais Vladimir Putin.

Se Malraux se deixou impressionar, em 1968, pelos protestos de Dreyer, Welles, Hitchcock, Kurosawa ou Truffaut contra a demissão de Lanlgois, parece ligeiramente menos provável que o actual ministro da Cultura russo, Vladimir Medinski, um homem suspeito de plagiar teses académicas e que se notabilizou por ter recomendado que os restos de Lenine fossem retirados do seu mausoléu e enterrados, se deixe comover pelos apelos de Amos Gitai, Jean-Marie Straub ou Pedro Costa, para citar apenas alguns dos realizadores que se solidarizaram já com Naum Kleiman.

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