Entre Tarantino e a telenovela, a catástrofe no teatro de Spregelburd

A Estupidez, peça central da heptalogia com que Rafael Spregelburd transporta Os Pecados Capitais de Bosch para a modernidade, está em cena no Teatro da Politécnica, reduzindo os pecados a meras palavras.

Fotogaleria
A Estupidez, peça de Rafael Spregelburd Jorge Gonçalves
Fotogaleria
A pintura Os Pecados Capitais, de Bosch. dr

Quando se está diante de um quadro de Hieronymus Bosch é difícil saber para onde começar por dirigir o olhar. “Tudo aparece ao mesmo tempo e todas as situações são interessantes”, reconhece o dramaturgo argentino Rafael Spregelburd ao PÚBLICO. “Não parece haver primeiro ou segundo plano.” Foi essa dispersão e ausência de um núcleo específico que Spregelburd elegeu como um dos pontos de partida para, em 1996, arrancar com o ambicioso projecto de escrever uma heptalogia teatral inspirada pela pintura Os Pecados Capitais, de Bosch. Mas a cada pecado o autor resolveu fazer corresponder uma transformação sugerida pelo contexto histórico actual. E assim a luxúria passou a inapetência, a inveja transformou-se em extravagância, a soberba degenerou em modéstia, a preguiça mutou-se em estupidez, a avareza deu em pânico, a gula cedeu o lugar à paranóia e a ira foi substituída pela teimosia.

“Cada um dos títulos não é necessariamente o contrário do original, é apenas uma recriação possível, casual e quase aleatória”, diz. “Ao mudar o nome ocorre naturalmente na mente do espectador uma série de associações que não aconteceria se mantivesse a designação original.” Não é de somenos a explicação que Spregelburd avança, agora que os Artistas Unidos voltam a apresentar uma das peças da sua heptalogia, A Estupidez, numa encenação de João Pedro Mamede que estará no Teatro da Politécnica, Lisboa, até 25 de Fevereiro. A escrita das sete obras é, afinal, atravessada por uma questão linguística fundamental: “Todo o pecado é uma palavra e as palavras são convenções de uma sociedade num momento determinado”.

A título de exemplo, Rafael Spregelburd lembra que “a palavra soberba era o pior dos pecados para a Igreja Católica”. “O significado não era o mesmo que lhe atribuímos hoje, significava alguém sentir-se superior a Deus. Sentir-se superior a outras pessoas era correcto, não era castigado pela Igreja. De facto, o rei era superior aos seus súbditos, os nobres detinham poder sobre a plebe que lhes pagava em tributos e impostos.” Da mesma forma que “a preguiça correspondia a não fazer o esforço de ler a Bíblia”. “A Bíblia estava em latim, era complicada e havia que castigar o povo que não lesse e fazê-lo entender que para lhe aceder tinha de passar pelos tradutores que eram os sacerdotes. Era um pecado muito cómodo porque obrigava as pessoas a congregar-se em torno de uma igreja e trazia um lado de obrigação, de poder e de conservação do status quo.” Resumindo, sustenta Spregelburd, “todas estas palavras são uma trampa”. Por isso, aplica-se a retirar-lhes poder.

Telenovela e Tarantino

Se a pintura de Bosch tem lugar num momento de inflexão da Idade Média, “em que alguns acontecimentos catastróficos põem fim às regras pelas quais a sociedade até então se regia”, analisa Spregelburd, os tempos que vivemos parecem-lhe igualmente marcados por essa aura de catástrofe em curso. O autor acredita que, no futuro, a História há-de referir-se a esta era com uma designação muito negativa. “Liberdade é hoje uma palavra que não vale quase nada. Quando um país tem liberdade de invadir outro simplesmente para regular o preço do petróleo, então a palavra liberdade é uma fraude.” A distância entre os valores apregoados como exemplares e a vida das pessoas tornou-se tão desmedida que, neste exercício, Spregelburd apenas consegue pensar em Bosch, no caos e numa complexidade que rejeita a ideia de centro.

Exactamente a meio da heptalogia, A Estupidez é a mais longa das sete peças que o argentino dedicou aos pecados mortais virados do avesso. Na sua apresentação original, na Argentina, excedia as três horas (a versão portuguesa na Politécnica não chega a tanto), com diálogos que se sobrepõem, 24 personagens concentradas no corpo de cinco actores, uma coabitação de registos em que tanto se encontram pistas do teatro tchekhoviano como da telenovela latino-americana, da literatura de Jorge Luis Borges ou do cinema de Tarantino – não é só o ar de policial enfiado em quarto de motel de Las Vegas, mas também a discussão em torno da música pop que remete, sem desvios, para Reservoir Dogs. “Interessam-me as questões intertextuais de cultura híbrida”, justifica, “e que são muito próprias do teatro latino-americano. A Europa parece ter uma tradição de formas puras; nós encontramos mais prazer numa comunicação sincrética e contraditória.”

Por todo o lado, nas negociações da venda de uma obra de arte à licitação pela publicação de uma fórmula matemática que permitirá prever o futuro, A Estupidez está pejada de referências ao dinheiro. Não por acaso, refere Spregelburd, esta é uma peça cujos direitos lhe costumam ser pedidos quando os países que pretendem levá-la à cena se encontram em situações de crise financeira. De facto, a peça foi escrita durante os efeitos duríssimos do colapso económico da Argentina no início deste século, em que o dinheiro desapareceu das ruas. Tanto assim que foram criadas moedas provisórias em cada província para tentar suprir a sua falta absoluta. A intervenção do FMI, a incapacidade de responder perante as dívidas e tudo o que se seguiu leva Spregelburd a classificar o período como “uma experiência neo-liberal” que testava a exploração até ao tutano dos países periféricos relativamente a um poderio financeiro central. Tempos de catástrofe, portanto, como os de Bosch.

Sugerir correcção
Comentar