Entre anjos e fantasmas

Pawel Pawlikowski trata sem tréguas uma matéria pesada, brutal — as feridas do século XX polaco.

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Pawel Pawlikowski deixa os fantasmas à solta para que façam o que têm a fazer: assombrar as personagens e o espectador

A primeira cena significativa de Ida é aquela em que Anna, noviça a semanas de fazer os votos definitivos, chega a casa da sua tia Wanda e esta a informa, numa mistura de brutalidade e elegância displicente, da sua verdadeira identidade. Chama-se Ida, é de origem judia, e se sempre viveu no convento foi porque aí a entregaram, ainda bebé, durante a Segunda Guerra Mundial, para a esconder da perseguição aos judeus.

Essa peculiar mistura — uma franqueza brutal e uma elegância quase nonchalante — dos modos de Wanda corresponde tintim por tintim aos modos do próprio filme, e à maneira como Pawel Pawlikowski, no seu primeiro filme polaco (até agora filmara em Inglaterra, país de adopção), convoca alguns dos mais tumultuosos fantasmas da história polaca do século XX. A guerra, o Holocausto, o papel dos polacos não-judeus (isto é, católicos) na sanha anti-semita, de resto um dos aspectos mais controversos do Shoah de Claude Lanzmann, e ainda, porque Ida é um filme de época e se passa em 1962, o comunismo e os grau de compromisso com o regime (a tia Wanda é uma “funcionária”). Matéria pesada, e de facto, brutal, que Pawlikowski, sem dar tréguas (por exemplo o momento da revelação do que aconteceu, e como, aos pais de Ida), consegue tratar com uma improvável leveza (não confundir com “ligeireza”) e uma ainda mais improvável ironia, tanto no “destino” de cada uma das duas protagonistas, como no retrato, esfuziante quanto baste, ou quanto possível, da dolce vita polaca dos anos 60 e do dinamismo da sua boémia artística e intelectual. E mesmo se Pawlikowski se afirma mais próximo (cf. entrevista neste suplemento) da “nova vaga checa”, parece razoavelmente certo que o “modelo estético” do seu filme se encontra, por exemplo, e sem nunca ser um “pastiche”, no preto e branco, áspero e contrastado, dos primeiros filmes de Skolimowski (que até é mencionado no genérico), absolutamente contemporâneos da época em que o filme se passa.O sucesso
a priori inesperado desta combinação de tanta coisa reside, possivelmente, na maneira como Pawlikowski deixa os fantasmas permanecerem fantasmas, reverberações e ressonâncias que agem sobre os muitos pormenores, narrativos e descritivos (e Ida, como filme capaz de pintar convincentemente um ambiente e uma época, está perto de ser imbatível). Boa parte do filme — a primeira metade, grosso modo — até podia ser simplisticamente descrita como um road movie lacónico, daqueles em que duas personagens de passado e temperamento completamente distinto se vão aprendendo a conhecer e a relacionar-se. Mas mesmo depois do momento crucial da revelação, que abana, no bom sentido, o tom do filme, continuam até ao fim como não-ditos ou não-explícitos. O que acontece a Wanda ao som de Mozart (numa cena extraordinariamente bem pensada e bem filmada, de que ninguém se esquecerá facilmente), ou a escolha final de Anna/Ida (quanto tem que decidir se quer ser “Anna” ou “Ida”): Pawlikowski guarda cuidadosamente qualquer espécie de interpretação ou clarificação psicológica, que neste contexto seria sempre uma maneira de neutralizar os fantasmas por via da retórica. Deixados à solta, podem continuar a fazer o que é suposto fazerem: assombrar. Assombrar as personagens (magnífica dupla de actrizes, diga-se) e, por extensão, assombrar o espectador.

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