Enquanto houver deuses

Jesmyn Ward saiu do anonimato para o maior prémio das letras norte-americanas com um romance em que a tragédia segue os pressupostos clássicos: o mal não é o fim da história

Foto

Quanto pode um prémio mudar o curso de um livro é sempre difícil de avaliar, mas não é arriscado dizer que o segundo romance de Jesmyn Ward teria ficado na sombra sem o National Book Award. Nascida numa família pobre do Mississípi, em 1977, Ward tinha um romance publicado em 2008 e era uma entre centenas de novos autores norte-americanos de talento que nunca saem da penumbra. Mais: era uma mulher negra, do Sul, longe dos círculos de influência que podem ditar uma carreira, estigmas de que se queixou numa entrevista. A publicação de No Coração da Tempestade (Salvage the Bones, no original) passou ao lado da crítica e o livro só foi recuperado quando passou à frente de Téa Obreht (a norte-americana de ascendência eslovena que fez sensação com A Mulher do Tigre) na corrida ao mais prestigiado prémio das letras na América. Foi no final de 2011. Ward ganhou e só então os jornais falaram do livro que contava o furacão Katrina de uma perspectiva tão desesperada quanto “salvífica”, à imagem das narrativas mitológicas em que a autora se inspirou. Foi mais ou menos essa a leitura que transportou Ward para a lista de nomes a seguir com atenção. No fim de 2013 saiu com o terceiro romance e as críticas sucedem-se. É uma ficção à volta de memórias pessoais, como já tinha acontecido com No Coração da Tempestade.

Jesmyn Ward conta-se nas histórias que inventa e nisso parece estar a sua marca. Natural de uma pequena povoação do Mississípi, a autora sobreviveu ao Katrina em Agosto de 2005. A casa onde vivia com a família desapareceu na água. Abrigaram-se num parque de tractores, de onde acabaram expulsos pelos proprietários brancos. Nesse ano, ganhou uma bolsa de Escrita Criativa da Universidade do Michigan, mas faltava tratar o trauma. Isso só lhe foi possível anos mais tarde, neste livro. O romance acompanha os dez dias que antecederam a tempestade, o dia em que o furacão devastou a região de Nova Orleães e o dia seguinte. Não estamos em DeLisle, mas num território ficcional criado a partir da terra onde Ward vivia: Bois Sauvage, lugar habitado pela população negra e pobre da região. Entre ela, a casa dos Batiste. É neste núcleo que se desenrola a acção centrada na figura de Esch, uma adolescente de 14 anos, única rapariga numa família de quatro irmãos: Randall, jogador de basquetebol que quer ganhar uma bolsa para entrar na faculdade graças aos dotes desportivos; Skeetah, que só pensa na sua cadela pitbull, China, campeã de luta com um protagonismo que contrasta com o de Esch; e Júnior, o mais novo, colocado aos cuidados de Randall e Esch quando a mãe morreu logo após o parto, e sempre a pedir atenção. São todos filhos de Claude, o homem alcoólico e violento que quebra a rotina de casa quando insiste que é preciso prepará-la para uma tempestade de que ouviu falar na rádio da velha carrinha.

No modo como o livro é construído, esse parece ser o prenúncio menos ameaçador, como se na tragédia dos Batiste a natureza do Mississípi fizesse parte de um mito formador. Não se questiona. “Estamos no verão, e, no verão, há sempre um furacão de chegada ou de saída. Abrem caminho através da planura do Golfo do México até à praia do Mississípi, com os seus quarenta quilómetros construídos pelo homem, onde embatem nos casarões de veraneio, cujos antigos alojamentos de escravos foram transformados em casas de hóspedes (…). Há anos que nenhum nos atinge em cheio, o tempo suficiente para nos esquecermos de quantos jarros de água temos de encher, de quantas latas de sardinha e patê de carne devemos armazenar, de quantas banheiras de água precisamos.”

A fala é de Esch. Ela é a narradora que procura situar-se no seu universo seguindo narrativas exteriores, os livros que a professora de Inglês lhes dá a ler em cada Verão. Leu Faulkner, Na Minha Morte; está a ler Mitologia, de Edith Hamilton, e interroga-se se o que sente por Manny é o mesmo que a Medeia sentia por Jasão, “como se um vento forte a tivesse trespassado”. As leituras de Esch são apresentadas no início do livro, que se estrutura a partir desse fascínio pelas histórias clássicas. Dessa perspectiva, Esch não é bem uma heroína. Enfezada, baixa, de feições vulgares, conhece o sexo aos 12 anos e tem relações com os rapazes que aparecem mais porque eles querem e não tanto porque ela queira. Até conhecer Manny, mais velho, por quem se apaixona e do qual fica grávida, enquanto ele a ignora ou humilha. “Em todos os contos da mitologia grega, há sempre um homem a perseguir uma mulher ou uma mulher a perseguir um homem. Nunca um meio-termo.”

A voz de Esch não soa despropositada face à sua circunstância. Constrói-se à frente do leitor enquanto rememora e reage, e encontra nas metáforas a sua maneira de se contar. Talvez essa seja a maior fragilidade do livro, essa tentativa de andar colado à mitologia. Como dosear? A voz é a de uma adolescente que, na sua luta pela sobrevivência, encontra apoio no amor dos irmãos, a força de uma narrativa em nada isenta de mensagem. Outro risco: uma falha e cai no sentimentalismo fácil. Mas Ward treinou a mão e, a par de passagens de enorme ternura, surgem descrições de crueza na melhor tradição sulista. De Faulkner ou Flannery O’Connor. Como quando conta, impiedosa, a luta de cães em que participa China, ou como a mãe torcia o pescoço às galinhas. Crua no erotismo, na violência, no sussurrar do medo até ele se tornar gritante. Só que em Ward nem tudo é negro. É coerente com a tradição da mitologia, a função colectiva a partir da experiência individual. Esch, maria-rapaz, tenta esconder o seu segredo ao longo dos dez dias que antecedem a catástrofe desconhecida, a sombra que vai ganhando contornos numa gestão de suspense eficaz. Katrina, a tempestade com nome de mulher e, logo, mais ameaçadora, é menos intrigante do que a relação de Skeetah com China. Quanto ao grau de destruição, ver-se-á. Esch aprende-se quando vê China amamentar ou lutar, matar e lamber a mão ao dono. Parece ser sempre em oposição a China ou como China. Este é um livro em que a fragilidade e a força se medem num jogo de sobrevivência com regras contraditórias. China não é sempre o que dela se espera. Ama mas mata. Vinga-se e salva. Esch compara-a a Medeia. Compara-se a Medeia. Admira-a, mas se pudesse escolhia ser outra deusa. Talvez Daphne, para ser desejada.?

Sugerir correcção
Comentar