Empreendedorismo cultural e audição

Guardo a secreta esperança de que ninguém mais da cultura empreenda pelos ouvidos.

Não estou certo... Mas julgo que empreendedorismo cultural tem a ver com empreender. Isto é, o que andam a empreender as gentes da cultura. Empreender no sentido em que na minha terra é sinónimo de cismar. Ou seja, o que se pode fazer com a cultura. Ou o que não se pode fazer. Ou, ainda, o que lhe podem fazer.

É certo que cada época tem o seu léxico. Quando o CDS era pelo socialismo personalista ou quando o PCP era revisionista porque não suficientemente revolucionário... Era o PREC. Ou a era do PREC, como queiram. O léxico pode ser mesmo uma forma arqueológica de datar documentos: dissecando-o, independentemente do conteúdo. Em sociologia histórica é tão ou mais garantido que o recurso ao carbono na física arqueológica.

Todavia, empreendedorismo cultural também pode ser o do ex-banqueiro (ou, não sei, ainda banqueiro?) Salgado, que foi doutor honoris causa pelos serviços prestados à cultura e à economia. O que está completamente certo. Não é ironia. Sobretudo se cultura se entende num sentido mais lato. Neste caso, a dos empreendedores. Traduzindo empreendedores por empresários de sucesso, à luz do léxico-palavreado actual. O sucesso que nos sucede, claro. Ou seja, o da sucessão de factos que têm vindo a acontecer à cultura. Que bem justificariam o carácter cultural do velho Mercado do Bom Sucesso no Porto! Sucesso, mercado, tudo bom!

Daí que não seja de admirar se, amanhã, for privatizado o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Para ser rentável num empreendimento cultural, como um hotel, por exemplo. Trata-se da batalha contra o défice. O défice cultural de quem nos governa para nos recuperar do léxico do PREC.

Ou, porque não?, também o Museu Nacional de Arte Antiga na saga de reformas estruturais modernas. Ou a concessão do Teatro Nacional de São Carlos. Será a prova irrefutável da flexibilidade de um poder político, não autoritário. Antes disponível para concessões a quem opera em operações de êxito. Ou êxodo, palavra cognata daquela.

Ou, já agora, igualmente o Dona Maria II transformado em parque de estacionamento privado de automóveis. Porque de espectáculos privados há muito que o é, desde que desapareceu a Companhia e tudo ficou mais só. Embora também se possa pensar no resgate soberano dos estábulos da Inquisição por uma Companhia. Uma Companhia de petróleo, por exemplo, que conhece os cavalos dos automóveis que por lá vão passando.

Mesmo assim guardo a secreta esperança de que ninguém mais, da cultura – da outra de que Goebbels não gostava – empreenda pelos ouvidos, tal é a criatividade destes artistas da gestão. Ou congestão cultural súbita. Seria uma mais-valia para audições, audiências, auditorias e auditórios… Mais valia que estivessem surdinhos.

Encenador

 

 

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