Em tempos de guerra

Um romance sobre como sobreviver entre as ruínas da memória de um tempo mais generoso

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Hans Keilson foi, ele próprio, um refugiado judeu forçado a escapar da Alemanha nazi e a encontrar guarida junto de uma família holandesa, experiência que retoma neste romance JOOST VAN DEN BROEK

Como conseguimos ver-nos livres do corpo de uma pessoa que é suposta não existir? É em redor desta questão que se desenvolve a trama, com traços de comédia negra, do romance de Hans Keilson (!909-2011), médico psiquiatra, judeu de origem alemã que, forçado a fugir pelos nazis em 1936, se refugiou na Holanda acabando por adquirir a nacionalidade holandesa. Comédia em Modo Menor, o segundo romance de Keilson — originalmente publicado em 1947 —, narra-nos a história de um jovem casal holandês, Wim e Marie, que aceita esconder no sótão de sua casa um homem mais velho, fisicamente o estereótipo do judeu sefardita, conhecido como Nico, procurado pelos alemães ocupantes.

Durante um ano, poucos são os que sabem da sua existência naquela casa, apenas alguns íntimos da família. Poucas vezes Nico se pode aproximar da janela, a não ser para “a cerimónia de ocultar toda a luz do quarto”. Ele sabe que em todo o lado o esperam “o tormento e o horror”, caso seja descoberto. Vive obcecado por vários medos, o de ser visto e denunciado, o de trazer problemas àquela família, mas sobretudo o de que o tempo e as dificuldades façam o casal mudar de ideias. “Este medo dominava-o como uma espécie de febre, o medo de ser um fardo para os outros, que estivessem fartos e quisessem ver-se livres dele.”

Na aldeia, são várias as famílias que abrigam refugiados judeus, entre os quais algumas mulheres grávidas que acabam por dar à luz escondidas. O medo de serem descobertos toma conta de todos, anfitriões e hóspedes, mas a vida continua (apenas na superficialidade) como se nada existisse nas caves e nos sótãos das casas. A generosidade e a simpatia para com os que estão em fuga é a resposta à opressão e violência dos ocupantes alemães. Mais do que um livro sobre a vida num pequeno lugar durante a Segunda Guerra Mundial, Comédia em Modo Menor é um romance sobre como sobreviver entre as ruínas da memória de um outro tempo mais generoso, e uma história sobre um medo específico, o de ser denunciado por aqueles de quem sempre gostámos. “O espinho que cresce invisivelmente dentro de quem vive da ajuda e da piedade dos outros tinha crescido e era agora enorme, transformando-se numa lança cravada profundamente na carne que provocava dores terríveis.”

O judeu Nico passa os dias sentado ou deitado, como se esperasse algo que ele sabe que demorará a chegar, se chegar; enquanto isso, e sem o querer, os seus pensamentos “viajavam com os comboios que estavam sempre a partir para o Leste, corriam pelos campos de concentração, pelos bordéis da morte, entravam no esconderijo e no quarto, viam tudo até ao fim”. E o fim de Nico começa a aproximar-se quando adoece de pneumonia. O médico visita-o várias vezes, também ele cúmplice de muitos dos que estão escondidos dos alemães, incluindo as mulheres que deram à luz. Mais tarde, será o médico que ajudará o jovem casal a ver-se livre do corpo.

O romance tem início com a morte de Nico. Hans Keilson — também ele foi escondido durante algum tempo por uma família holandesa, até se juntar à resistência à ocupação alemã — faz em capítulos alternados várias analalepses bem arquitectadas de maneira a que a história da estada de Nico e a do casal que tenta fazer desaparecer o corpo surjam como uma espécie de continuação dos vários episódios contados. O autor, que estudou Medicina em Berlim, e depois da guerra acompanhou como psiquiatra crianças judias traumatizadas — é da sua autoria o primeiro estudo científico, na perspectiva da psiquiatria, destas crianças —, consegue emprestar, sem que isso se torne “pesado” ou central ao livro, uma profundidade psicológica que faz lembrar a escrita de um outro autor judeu, Joseph Roth. A ironia, muitas vezes quase subliminar, é outro dos grandes predicados deste romance, que ao mesmo tempo se alia a um ligeiro tom de comédia negra, sobretudo na parte final em que alguns segredos acabam por vir ao de cima, dando a todo o romance uma outra dimensão.

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