Em Sines o rock é made in Mongólia, Coreia do Sul e Colômbia

Meridian Brothers, Ajinai e Jambinai reinventaram o rock no Festival Músicas do Mundo. E fizeram companhia a Mulatu Astatke e Ibrahim Maalouf nos muitos pontos altos de dois dias que culminaram com um concerto de sitar saudado por uma multidão às quatro da manhã.

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Meridian Brothers Mário Pires
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Ajinai Mário Pires
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Jambinai Mário Pires

O mais certo é que Jimi Hendrix nunca tenha ouvido a palavra "champeta" ao longo dos 27 anos que precederam a sua morte pouco gloriosa, engasgado no próprio vómito.

Enquanto fenómeno musical popular colombiano, com guitarras e teclados a preço de saldo a ordenarem aos frequentadores dos bailes que se rocem desavergonhadamente nos seus parceiros, a champeta só ganhou relevo nos anos 80, já Hendrix se tinha finado. Mas para que não permanecessem em mútua ignorância, os Meridian Brothers resolveram juntá-los numa delirante versão de Purple haze para lá das três da manhã no palco da Avenida da Praia, em Sines. O concerto dos colombianos foi a descarga certa após uma noite de quinta-feira ziguezagueante no Castelo, iniciada por um óptimo concerto da trupe etíope comandada por Mulatu Astatke. Mas lá iremos.

Purple haze acabara de deixar o público esbugalhado perante a brilhante desfaçatez com que os Meridian Brothers exumam o espírito aventureiro de Hendrix, transformando esse acto num atordoado baile às portas da Amazónia ou dos Andes colombianos. Pouco depois, essa febre tropical que parece acompanhar cada canção saída do génio de Eblis Álvarez escancara-se, quando, no final do instrumental El gran pájaro de los Andes, os cinco músicos em palco desatam a macaquear animais (macacos inclusive) com as vozes a treparem por cima umas das outras. Por esta altura, tudo era já normal nesta soberba demonstração de alegre demência artística e de como as músicas locais e universais, depois de se cheirarem e reconhecerem, continuam a juntar-se em sínteses de completo deslumbramento. Aqui, ao longe, faz sentido e agradecemos que o rock (carregado de psicadelismo e sons do vallenato, da cumbia e da salsa) na Colômbia soe como nenhum outro.

A sensação não era estranha. Já na véspera, Aijinai e Jambinai tinham apresentado teses magníficas dedicadas à temática “Como fazer do rock uma experiência intuitivamente asiática”. Do lado dos mongóis Ajinai, aquilo a que assistimos é uma notável investida dentro de alguma convencionalidade do rock, mas adulterada pela execução enérgica do morin khuur – imagine-se um pequeno violoncelo cujo topo ostenta uma cabeça de cavalo, tradução, de resto, para o nome do instrumento. Não larguemos esta imagem por mais uns segundos: a música dos Ajinai, grupo fundado por um dissidente dos Hanggai, soa a constantes cavalgadas pelas estepes do país. Neste rock, a guitarra eléctrica entrega a primazia ao morin khuur, a bateria fustiga ritmos tradicionais e as vozes assumem a técnica khoomei – uma forma gutural de produzir um som hipnótico que parece uma descoberta da necessidade de comunicar em extensas paisagens áridas e desabitadas.

O caso dos Jambinai é um pouco mais extremo. Próximos de uma linguagem pós-rock associável aos Mogwai, atravessada por elementos noise e punk, vivem numa alternância entre momentos etéreos que nunca desligam a tensão até desabarem em pesadas descargas obsessivas. É seguir os movimentos de Lee Ilwoo, cujo penteado à Justin Bieber não faz adivinhar este jogo de sonho inquieto/pesadelo: quando utiliza o instrumento de sopro piri, pode recuperar-se o fôlego, mas quando se lança à guitarra é de esperar que as estruturas que seguram o céu lá em cima possam ceder de vez. No haegum, espécie de violino que parece só admitir as frequências agudas, Kim Bomi garante que ninguém relaxa durante a actuação dos Jambinai. Uma incrível vergastada sonora – sexta-feira, 25, repetem a dose no Milhões de Festa – a provar que nem só de gangnam style vive a Coreia do Sul.

Aqui também há jazz

Passava das quatro da manhã quando Niladri Kumar terminou o primeiro tema da sua actuação na Avenida da Praia. O virtuosismo estarrecedor do músico indiano no sitar rendeu uma generosa ovação. E o músico, sabendo que há horas mais fáceis para conquistar uma multidão com recurso a uma música tocada por gente sentada (sitar+tablas) e sem as confortáveis camas rítmicas electrónicas, valeu-se da História e parafraseou Ravi Shankar no Concerto para o Bangladesh de 1971: “Se gostaram assim tanto do soundcheck, espero que também gostem do concerto.” (No original, Shankar falava em afinação.) Inteligentemente, citaria Deep Purple ou Carlos Paredes, trazendo referências populares para uma mescla de ragas indianos que poderia revelar-se um problema, mas que apenas reforçou o constante questionamento do que pode ser e oferecer o FMM.

Não apenas do rock, estas foram noites também do jazz. Através de um concerto que confirmou o génio autoral e a frescura do ethio-jazz de Mulatu Astatke, à frente de uma banda composta por músicos em que não havia excepção para o excepcional. Cada um deles, de resto, ajudou a que na quinta-feira o lendário e septuagenário Astatke não se expusesse demasiado, sublinhando antes o tom de filme de espionagem rodado em Addis Abeba, produto de um caldo muito específico de jazz, funk e ritmos afro-cubanos que contamina muita da sua música. Na noite anterior, o trompetista libanês radicado em França Ibrahim Maalouf conseguiu o feito impensável de quase calar o Castelo de Sines numa interpretação a raiar o silêncio, descritiva de um passeio a pé por Beirute em que gastou quatro horas da sua vida. Tão magistralmente tocante que falar se tornou criminoso e todo o impressionante concerto pareceu convergir para esse momento.

No excelente alinhamento de quarta e quinta-feira, houve ainda tempo para os belos inícios de tarde com a inebriante música dos África Negra e para o delicioso convite a entrar no universo tradicional mirandês dos Galandum Galundaina, povoado por pastores distraídos pelos amores (e lá deixam que um lobo lhes coma o rebanho) ou por frades cornudos. Na noite em que o secretário-geral do PS, António José Seguro, circulou pelo FMM (dois dias antes fora a vez do ministro adjunto Poiares Maduro), em que Nástio Mosquito pareceu hesitar entre ser um Jim Morrison angolano em banda funk e adoptar a via musical do pernambucano Otto e em que a cantora canadiana/haitiana Mélissa Laveaux trouxe uma bonita brisa pop ao Castelo (reinventando Weezer e Leonard Cohen pelo caminho), os menores de seis anos voltaram a poder entrar no recinto. As fronteiras complicam demasiado num festival que se empenha em esbatê-las.

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