Em prol da reabilitação do património

Recriações musicais sobre poesia (cuja música não foi notada ou se perdeu) de diversos trovadores e jograis galegos e portugueses.

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O pergaminho Vindel, manuscrito das cantigas do jogral galego Martim Codax

O ensemble Resonet, sediado em Santiago de Compostela, é formado pelos músicos Fernando Reyes (direcção e instrumentos de corda dedilhada), Mercedes Hernández (canto), Paulo González (instrumentos de sopros e sanfona) e Carlos Castro (saltério e percussão). O grupo dedica-se à interpretação de música antiga relacionada com os Caminhos de Santiago, sendo o disco Cantiga – Trobadores de Galiza e Portugal exclusivamente dedicado ao repertório trovadoresco galaico-português dos séculos XIII e XIV.

Gravado em Dezembro de 2015 na Igreja Românica de São Pedro de Rates, na Póvoa de Varzim, o disco foi oficialmente apresentado ao público no mês de Julho numa sessão que antecedeu o excelente concerto realizado nesse mesmo espaço arquitectónico, no âmbito do 38º Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.

As vinte e uma faixas desta edição fonográfica consistem maioritariamente em propostas de reabilitação musical de cantigas cuja música se desconhece. Exceptuando as seis cantigas do jogral galego Martim Codax, que chegaram até nós com música (notadas no famoso Pergaminho Vindel), as restantes faixas do disco são recriações musicais sobre poesia (cuja música não foi notada ou se perdeu) de diversos trovadores e jograis galegos e portugueses, nomeadamente o rei Dom Dinis, Afonso Sanches (filho bastardo de Dom Dinis e figura central da corte portuguesa), Roi Fernandiz de Santiago e Airas Nunez (clérigos galegos ligados à corte castelhana de D. Afonso X), Pai Gomez Charinho (nobre galego ligado à corte castelhana de D. Sancho IV), entre outros tantos autores. O alinhamento do repertório obedece simultaneamente a critérios poéticos (tais como afinidades temáticas) e musicais (nomeadamente na escolha dos modos e da instrumentação).

Como se pode ler nas notas que acompanham o disco, o processo de recriação musical baseou-se em duas estratégias principais: por um lado a improvisação, “tendo em conta os modos, os ritmos e o estilo da época” e, por outro, a adaptação de melodias de outras canções numa prática de “contrafactura” que era comum na Idade Média. A maior parte das melodias que serviram de ponto de partida à contrafactura são retiradas das Cantigas de Santa Maria (importante colectânea realizada no século XIII na corte de Afonso X) e do Códice Calixtino (manuscrito realizado no século XII em Compostela, relacionado com o culto e as peregrinações jacobeias e que inclui um importante número de melodias gregorianas e alguma música polifónica).

O grupo refere também a importância da iconografia musical medieval (nomeadamente as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda) no exercício de reflexão sobre as possíveis forma de tocar os instrumentos. Para além disso os instrumentistas basearam-se nas formas de execução sugeridas pela morfologia e pelas características acústicas dos próprios instrumentos musicais, procurando deste modo ir ao encontro das supostas maneiras de execução instrumental na Idade Média.

Ao nível interpretativo a cantora Mercedes Hernández demonstra particular sensibilidade para este repertório, recorrendo a adequados cambiantes de registo vocal e a ornamentação melódica criteriosa. A interpretação instrumental é igualmente de grande qualidade, destacando-se o virtuosismo de Fernando Reyes nos instrumentos de corda dedilhada e o equilíbrio do conjunto. No global o disco apresenta um conjunto de abordagens interpretativas e de combinações instrumentais muito interessantes, resultando num objecto de elevada qualidade musical e de incontestável valor cultural pelo trabalho realizado no âmbito da reabilitação do património musical galego-português. É ainda digno de destaque o envolvimento do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim que apoiou e patrocinou a edição fonográfica.

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