Em Barcelona, um tempo de sombras e de ruínas

Os Artistas Unidos levam à cena O Tempo, da catalã Lluïsa Cunillé. Uma peça que se ocupa da deterioração das personagens e da burguesia republicana de Barcelona.

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O TEMPO de Lluïsa Cunillé Jorge Gonçalves

Ela e ele encontram-se no escritório de uma empresa de Barcelona. Ela é herdeira de uma fábrica de calçado em Barcelona, ele é um aparente vulgar escriturário. Ela acaba de tomar em mãos a gestão entregue pela mãe (que agora quer viajar), ele foi incumbido por esta de escrever a história daquela empresa familiar. E aquilo a que se assiste em O Tempo, peça inédita da autora catalã Lluïsa Cunillé levada à cena pelos Artistas Unidos, no Teatro da Politécnica (Lisboa), até 12 de Dezembro, nos vários encontros entre os dois espalhados ao longo de seis anos, é não tanto o retrato de uma relação a dois mas antes, como o destaca o encenador Jorge Silva Melo, “a transformação da burguesia republicana de Barcelona”.

Desde logo porque ela, jovem moça criada com o conforto dos proventos financeiros da empresa, criada a apurar os dotes de pianista ocasional, é roubada ao conforto doméstico e obrigada a suspender uma vida quase etérea, para arregaçar as mangas e se entregar a um futuro para o qual não foi preparada. Tão pouco preparada, de facto, que não fala sequer os rudimentos de francês para comunicar com os clientes marroquinos (sinal dos tempos de uma Catalunha desligada do país vizinho). Tanto assim que, como quem reconhece – não sem uma nota de melancolia – o fosso geracional que a separa da sua antecessora, declara: “Eu chamo-lhe empresa e a minha mãe chama-lhe fábrica.” Para ela aquele era um lugar de onde saía dinheiro. Para a mãe era um lugar de onde saíam sapatos.

No curto período da vida das duas personagens que Lluïsa Cunillé nos dá a ver, acompanha-se igualmente o processo de gentrificação de Barcelona, com o abandono da fábrica do centro da cidade para a periferia e, mais tarde, para um complexo industrial mais longínquo. É também na periferia da cidade catalã que vive Cunillé, “uma pessoa muito, muito reservada, uma espécie de Greta Garbo”, descreve Silva Melo, de onde pouco sai – a não ser para circular no último autocarro da noite, em busca das pessoas solitárias que lhe abastecem a escrita, quando se põe a imaginar o que lhes terá acontecido durante o dia.

Grandes decisões

O Tempo – com que a autora venceu o Prémio Born 2011 para melhor peça de teatro escrita – não esconde a matéria a que mais afincadamente se dedica. É a passagem do tempo, pouco usual como centro da escrita dramática, e o lastro de deterioração que vai deixando atrás de si que interessa a Lluïsa Cunillé. A ruína iminente da empresa a que ela (interpretada por Rita Brütt) se dedica é também a sua própria ruína pessoal, afastada da família, vergada por um fardo profissional que não escolheu, a que corresponde, de alguma maneira, a queda dele (Américo Silva), a falência do seu casamento, os planos de tomar conta de uma loja de “artigos para presentes” para salvar o filho do desemprego.

Quando ela o procura é a história da empresa que quer deslindar, recorrer à memória dele, porque a mãe nunca lhe falou aprofundadamente do quotidiano dentro daquelas paredes. O que não sabe, ainda, é que ele é não um contabilista como se adivinharia, mas um “pequeno escrivão anotador da vida”, como lhe chama Silva Melo, encarregado de escrever as memórias da fábrica. Como se, antecipadamente, vaticinasse o seu fim – da mesma maneira que Cunillé, através das duas personagens, vai também descrevendo o fim desta burguesia.

Nestes encontros entre duas figuras tchekhovianas – “poderiam ser personagens de O Tio Vânia”, argumenta o encenador –, “vamos vendo um mapa das sombras de Barcelona, da burguesia que foi anarquista, republicana, rica e musical”. E à medida que isso se desfaz, percebe-se também que o memorialismo de que o escriturário é guardião se esboroa igualmente, revelando-se inútil. A memória de pouco vale, não é preservada e afunda-se com celeridade na maior irrelevância. Na verdade, é essa passagem do tempo, inclemente e arrasadora, que Cunillé parece contemplar. Não apenas nos corpos e em vidas reclamadas por sacrifícios pessoais, mas também nas cidades e na terraplanagem da sua história. A memória parece, na verdade, cada vez mais curta. Ela tem de anotar tudo; ambos perguntam constantemente “quem?”, como se só o aqui e agora tivesse sentido e fosse entendível.

Na última morada da fábrica, as janelas dão para um parque automóvel com uma paisagem indistinta, os carros todos iguais. Ela, com 32 anos, está então perante o momento das grandes decisões, o momento a partir do qual o curso da sua vida já não poderá ser corrigido. E sai de cena, acredita Silva Melo, como se entrasse no sepulcro. Não por a sua vida ter de facto terminado, mas talvez por ter matado as suas hipóteses de escolha e cedido em definitivo à impotência.

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