Eles querem o teatro e o real

Assistiram a despejos, ao abandono e à tentativa de privatização da Cavallerizza Reale, casa de uma das principais companhias de teatro de Turim. Mas numa noite disseram basta. Centenas de activistas ocuparam o edifício-património turinense para devolver o teatro à humanidade. E lá continuam.

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O movimento popular Assamblea Cavallerizza 14:45 discute soluções para o teatro desde a ocupação de Maio passado LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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A 23 de Maio do ano passado, cerca de 300 pessoas – entre artistas, arquitectos, juristas, funcionários públicos, estudantes e desempregados – ocuparam o espaço abandonado LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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As antigas cavalariças reais foram classificadas como Património da Humanidade pela UNESCO em 1997 LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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A Cavallerizza Reale foi palco do Teatro Stabile de Turim durante nove anos, tendo produzido dezenas de espectáculos para uma audiência anual de 30 mil espectadores LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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O Teatro Stabile viu-se obrigado a abandonar a Cavallerizza no final de 2013 por falta de condições de trabalho e de financiamento LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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Desde Maio, a Assamblea Cavallerizza 14:45 organizou peças de teatro, concertos, projecções de vídeo, workshops, residências artísticas, debates: uma programação diária para evitar o despejo pela Câmara Municipal LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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Toda a programação comunitária do espaço é de acesso inteiramente gratuito LUCA DI LOTTI/THE BLUE POLAROID
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A cidade de Turim continua a frequentar activamente o seu teatro, apesar da falta de condições
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A cidade de Turim continua a frequentar activamente o seu teatro, apesar da falta de condições
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A cidade de Turim continua a frequentar activamente o seu teatro, apesar da falta de condições
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A cidade de Turim continua a frequentar activamente o seu teatro, apesar da falta de condições

Das paredes do Museu Nacional do Cinema, Marcelo Mastroianni observa, tranquilo e a preto e branco, os passeantes de Turim. O centro da cidade é calmo, e ao longo da via Giuseppe Verdi nada mais se inflama do que o vento, pelo menos à primeira vista. Mas uma faixa de protesto à entrada das antigas cavalariças reais, que foram casa da companhia Teatro Stabile di Torino entre 2004 e 2013, indicia o contrário. Já nada disto é teatro. “A Cavallerizza é real”, lê-se no alto.

Esta noite há concerto de percussão, senegalês. Bruno, Sergio, Mauro, Roberta, Olga e Karl rodopiam de um lado para o outro. Arrastam mesas, fumam cigarros, puxam a electricidade por cabos e discutem os planos em voz alta, sem coreografia. No edifício histórico da Cavallerizza Reale, a improvisação é o método privilegiado desde 23 de maio, o dia em que aproximadamente 300 pessoas – entre artistas, arquitectos, juristas, funcionários públicos, estudantes e desempregados – ocuparam o espaço abandonado (classificado património da Humanidade pela UNESCO em 1997) com o intuito de o resgatar da venda a privados. “Querem tirar-nos o teatro”, reclamam os ocupantes, que optaram por pôr em marcha uma programação cultural ininterrupta com o intuito de evitar o despejo.

Até 2006, estes 40 mil metros quadrados de arcadas, salões, jardins e 109 apartamentos pertenciam à Administração Militar italiana (a Cavallerizza Reale começou a ser construída em 1740, como academia militar da Casa de Saboia e da aristocracia piemontesa) e eram vedados ao público, até que a autarquia turinense investiu 37 milhões de euros na sua compra, avançou para um processo de reabilitação parcial do complexo e cedeu gratuitamente uma fracção à Universidade de Turim. A academia gastou, por sua vez, sete milhões de euros em obras de restruturação para erguer um auditório. O cenário estava montado para tornar a Cavallerizza no palco público do Teatro Stabile. Em nove anos, a histórica companhia nacional, fundada em 1955, levou dezenas de espectáculos a uma audiência anual de 30 mil espectadores. Em 2010, “a Câmara Municipal vendeu uma parte da Cavallerizza à CCT srl, uma empresa subsidiária com investidores privados cujo objectivo é valorizar esta e outras propriedades públicas”, relatou ao Ípsilon Gianguido Passoni, vereador da autarquia. O processo acarretou o desalojamento de 38 famílias dos 109 apartamentos. No final de 2013, deu-se o vazio: por falta de condições de trabalho e de financiamento, o Teatro Stabile viu-se forçado a abandonar a Cavallerizza. Foi o grande rastilho da “revolução”.

 

Um projecto dos cidadãos

Os turinenses mais atentos não conseguiram pactuar com o abandono deste edifício histórico do centro da cidade, que se posiciona casualmente frente a uma estação da polícia municipal de Turim. Esta era a casa do teatro, mas também e, “antes de mais, a casa de muitas pessoas, e Turim é uma cidade onde muita, mas mesmo muita gente tem ficado desalojada por causa da crise”, observa Roberta Bonetto, 29 anos, bailarina e porta-voz da Assemblea Cavallerizza 14:45, o movimento popular que tem debatido soluções para o problema real da Cavallerizza.

Os olhos de Roberta são duas grandes olheiras cinzentas. O tempo da entrevista dura mais de seis cigarros. Chamam-na para a sala de teatro, interrompem-na para pedir direcções, perguntam pelo lugar dos tupperware no bar. Ela explica que o caminho desta história é no sentido da privatização, pelo que a intenção número um do grupo é “travar o processo de venda pelo menos por 100 meses e transformar a Cavallerizza num projecto comunitário”. Defende, de mãos ansiosas, que este lugar é “um bem público e o objectivo do grupo é mantê-lo assim”. E o colectivo complementa: “Não queremos que a Cavallerizza se torne um hotel, um condomínio de luxo, um parque de estacionamento [projecto em cima da mesa para o piso subterrâneo de um dos jardins do complexo] ou outro lugar qualquer onde não nos deixem entrar!”

Johnny, técnico de som e activista da Cavallerizza, puxa as calças para cima com uma mão e agarra com a outra um prato pesado de esparguete. Suga os fios com a presteza de um malabarista enquanto nos conduz corredores afora. “Este é o salão grande, onde antigamente se faziam espectáculos com cavalos. A família real assistia ali de cima”, conta. Entre o decadente e o renascente, o espaço é um dos orgulhos dos manifestantes. “Aqui já temos chuveiros, casas de banho”, mostra Johnny à saída, apontando para contentores brancos que servem de apoio às 12 pessoas em residência artística na Cavallerizza.   

Na estrutura principal, plásticos e iluminação improvisada dão vida à sala onde se realizam os ensaios de teatro e as tertúlias de domingo. “A nossa proposta – e quando digo ‘nossa’ é da comunidade – é que este lugar seja um laboratório para a participação cívica, com projectos comunitários que tornem possível viver a cidade”, espera Roberta. A manifestante ressalta que as assembleias da Cavallerizza “já chegaram a ter 450 pessoas” apostadas em construir argumentos que convençam a autarquia a travar o processo de venda. “O nosso discurso é político, claro, envolve sobretudo propostas de política cultural, programação e produção para este espaço, baseadas naquilo que temos feito ao longo destes meses. Organizámos peças de teatro, concertos, projecções de vídeo, workshops, residências artísticas, debates… Temos uma programação diária para que não nos tirem daqui.” Outro ponto central do projeto assenta na sua filosofia económica: “Não existem bilhetes para entrar na Cavallerizza”, acrescenta a bailarina desempregada, explicando que a estrutura tem funcionado até hoje mediante donativos. É isso que lhes permite pintar paredes, ter um equipamento de som e um sistema de iluminação, organizar jantares e festas, manter o bar em funcionamento, ilustrar cartazes.

 

Um centro de periferia

Além da programação contínua, há um painel de especialistas debruçados sobre possíveis alternativas legais e económicas para a Cavallerizza Reale e o Instituto Politécnico de Turim (IPT) já realizou um seminário com intervenientes italianos (inclusive da Câmara Municipal de Turim) e estrangeiros (como o director do espaço La Friche, em Marselha) para debater o tema.

Karl Kraehmer, 23 anos, que deixou a Alemanha para estudar Arquitectura e Urbanismo no IPT, pertence ao grupo contestatário das recentes transformações na cidade, integradas numa “política que tem destruído a rede do comércio tradicional e os mercados de Turim”, entre outros pólos. Em linha com este posicionamento, a Cavallerizza surge como “uma espécie de periferia bem no centro da cidade, porque tem algumas das mais importantes instituições culturais a poucos passos, mas, por outro lado, esteve muitos anos vedada ao público e já foi, até, lugar de estacionamento para polícias”, conclui Karl.

A vizinha polícia municipal já não estaciona nos espaços da Cavallerizza mas “ronda as instalações diariamente”, conta Roberta, com um acento de convicção: “Nós estamos aqui, de facto! E a Câmara só não nos expulsa porque não tem uma solução melhor!” A autarquia, por sua vez, garante que “nunca pensou recorrer à força policial para expulsar os ocupantes”, frisa Gianguido Passoni.

A posição oficial da CMT é clara: “Temos de iniciar um diálogo com todas as partes sociais, cidadãos e investidores privados. É claro para todos que a ocupação é um acto perigoso e ilegal, mas a nossa prioridade é o diálogo”, declara Passoni. Embora as conversações estejam em curso, para os ocupantes, as perspectivas não são animadoras, como nota Karl: “Ainda não chegámos a negociações. Eles insistem na sua posição – ‘Vamos vender, mas pediremos ao comprador para fazer algo de cultural’. No entanto, não há garantias disso. Os documentos oficiais não obrigam o comprador a definir os fins de utilização do espaço.”

A história da Cavallerizza Reale não vive sozinha em Itália. Em 2011, o Teatro Valle, em Roma, foi ocupado por trabalhadores do espectáculo com motivações semelhantes à dos manifestantes de Turim. Páginas de Facebook, blogues e outras plataformas foram alimentadas de uma revolta diária em relação à política cultural seguida no país, como indicavam as declarações de Benedetta Cappon ao jornal The New York Times num artigo publicado a 27 de Junho daquele ano: "Em Itália, passamos de emergência para emergência sem tentar reformar o sistema."

A história da ocupação do Teatro Valle, que, segundo os rumores então difundidos, se prepararia para ser transformado num casino, converteu-se numa campanha de recolha de fundos (que hoje vai nos 150 mil euros) para a criação da Fundação Teatro Valle Bene Comune. "É um salto de fé, uma loucura lúcida" e "um caminho para a construção de uma nova instituição na cidade (...), um lugar que não é público nem privado, mas governado pela comunidade de artistas e cidadãos", lê-se na página do movimento comunitário que dirige a iniciativa. É por um lugar parecido com este imaginário romano que luta Turim.

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