Eduardo Prado Coelho, aquele que escrevia para nós e nós não sabíamos

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O colóquio tentará definir as estruturas do "edifício da alegria" de Eduardo Prado Coelho Daniel Rocha

Um dia, conta Eduardo Prado Coelho (EPC) no diário que escreveu durante os anos em que foi conselheiro cultural na Embaixada portuguesa em Paris, um amigo disse-lhe, tendo lido os seus textos, que os leitores iriam pensar que não fazia mais nada "senão ler, ouvir música, ir ao teatro e ao ballet..." A resposta definia, de uma assentada, esses que assim pensassem e o próprio ensaísta: "Imbecis - medem o tamanho dos dias pela dimensão das suas cabeças".

A cabeça de Eduardo, ou o modo como ele deixou que fosse lida, está em discussão hoje e amanhã na Fundação Gulbenkian que acolhe um colóquio dedicado àquele que, escreveu Eduardo Lourenço quando Prado Coelho morreu, em 2007, foi "o mais lido dos nossos intelectuais "inorgânicos", o mais influente, sobretudo depois que se tornou o comentador do nosso quotidiano".

Organizado pelo Centro de Estudos sobre o Imaginário Literário e o Observatório Político, reúne amigos e leitores, num exercício que tentará definir as estruturas desse "edifício da alegria" - assim se chama o colóquio - que era o prazer hedonista de "ter na palavra a acção". A expressão é do amigo, cúmplice e, muitas vezes, crítico António Mega Ferreira, um dos convidados, para quem Prado Coelho era "um pensador urbano", com "uma abertura ao presente e ao futuro" que nos ensinou a viver sem nostalgia.

Talvez por isso seja menos útil o exercício especulativo de imaginar o que pensaria e escreveria sobre os tempos que vivemos, do que perguntar por que não terá surgido alguém a ocupar o seu lugar. Identificar o que nos deixou alguém que era "um sismógrafo da vida cultural", expressão do poeta e cronista Pedro Mexia, é reconhecer que Prado Coelho correspondia ao que tendemos a definir como intelectual: "A capacidade de, numa frase, poder produzir pensamento." Mas, para o próprio Prado Coelho, escreve-o nos diários de Paris, essa ideia de produção relaciona-se com uma outra filosofia de vida. A actividade intelectual, escrevia, recuperando uma frase de Jean-Louis Schefer, na revista Trafic, significava a "recusa obstinada de aborrecimento, de ser dividido por protocolos sociais: formas de trabalho, formas de prazer, formas de obrigação e de dívida social sagrada".

Para Prado Coelho, lembra Mega Ferreira, haveria um objectivo que estruturava a sua acção, ele que fazia da palavra "um mecanismo de inquirição do mundo". Escreveu-o em Pessoal e Transmissível, a propósito de cafés, num texto que também era sobre espaços de encontro público como os centros comerciais (e era esta heterodoxia que, lembra Mexia, "enervava tanta gente"): "Temos que viver o tempo que é o nosso".

Para a claridade

Prado Coelho nunca gostou de pensar no fim das coisas. E se "era pela palavra que a acção acontecia", como diz Mega Ferreira, "a acção dele era a de nos pôr a pensar, de nos interrogar sobre tudo".

"Nos últimos 20 anos de vida, os textos do Eduardo são textos que nos questionam, a nós que estávamos a viver o nosso tempo". É por isso que Mega Ferreira diz, com a voz pausada da saudade, que Prado Coelho "escrevia para nós e nós não o sabíamos": para nós os que assistimos "às transformações da classe média que o ideário de esquerda não conseguia prever nem acompanhar", para nós os "que estávamos a viver o nosso tempo" e que tínhamos neste "pensador urbano", neste utópico com uma obra "tingida de emoções", alguém que "antecipou muitas vezes, em filigrana, a vida cultural portuguesa".

O que de mais interessante existe na obra de EPC, acredita, é o facto de ela "caminhar para a claridade". "O Eduardo não dava por encerrado um argumento". Do diário, esta passagem, de 1992, tão clara quanto misteriosa: "Todas as minhas grandes discussões (e tenho algumas memoráveis) foram contra a configuração demasiado brutal de certos juízos. Isto é, foram combates em nome da desaceleração." Prado Coelho, acredita Mega Ferreira, "olhava para os objectos artísticos sem nenhuma espécie de hierarquia, apreciando-os como tal".

Consumidor de cultura

"Ele tinha uma visão hedonista, com uma grande noção do prazer e da leveza", começa por dizer Mexia. Mas se na sua geração havia quem, "não tendo baixado o grau de exigência, ignorasse tudo o que é feito nas últimas décadas", EPC, com "uma escrita que não era de pose", tacteava. Esta heterodoxia respirou de um tempo, e ajudou a formar esse mesmo tempo, onde foi forjada a noção de consumidor de cultura, como lembra Mexia, "não apenas o consumidor acrítico, sem nenhuma espécie de juízo, mas o que começa a escolher".

EPC vive o tempo da modernização e da internacionalização cultural, do fim do cavaquismo e da visão da terceira via socialista. Viu serem alteradas as funções de divulgador e de gatekeeper, "na qual foi essencial", chamando a atenção para o que se passava lá fora, e fez, lembra Mega Ferreira, "uma obra muito mais aberta, através da formulação de perguntas". Essas mudanças levaram "a que o próprio mudasse também", diz Mexia. Essa evolução, mantendo a leitura "como repetição itinerante", como conta a ensaísta Maria Filomena Molder, punha em causa a própria actualidade.

"Fazer frente ao dia e atenção ao actual, com todos os riscos que isso implica", obrigava-o a pôr-se em causa. Molder está convicta de que a determinação de EPC era "um exercício de resistência face ao que se torna preponderante." E Mega acredita que EPC, na sua generosidade, olhando para os objectos "sem qualquer hierarquia", permitiu que algumas das obras encontrassem um eco, "mesmo que algumas não tenham sobrevivido ao filtro do futuro".

Molder lembra o final de um texto onde EPC comenta as posições de Derrida sobre Kant. "Porque haver um só tom seria a morte, porque a algaraviada de múltiplos tons é o niilismo". O que estas duas frases têm de precioso, diz a ensaísta, é conterem a consciência de que "a alternativa passa pela escolha. E que haver uma explosão de todos os outros pontos de vista é uma tentativa de corrigir a vida. Isso é a morte". EPC, por seu lado, falava de vida, de estar presente, "como se precisasse das múltiplas pulsões do tempo que eles exprimiam para acompanhar as múltiplas eternidades do seu presente tão excessivo de dons e de urgência vital", escreveu Lourenço.

"Eu não escolho um campo entre os campos que já existem, e resisto com todas as minhas forças a todas as intimidações com que pretendem forçar-me a estar com este ou aquele campo. És por A ou por B? - eis o torniquete totalitário, a máquina binária, com que os colectivos e as instituições pretendem extorquir uma escolha. Não, o campo que eu escolho sou eu que o construo - entendido?"


 

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