É tão grande o Alentejo

1. Vai fazer meio ano que moro no Alentejo e ontem à noite vi, neste silêncio de paredes grossas, Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut, reduzido ao pequeno ecrã do meu portátil. É como ver um western assim, as montanhas não cabem, os vales não cabem, os heróis não cabem, não conseguimos ver o dia e a noite nos olhos deles, e se eles cantarem, como num filme de Nicholas Ray, não conseguiremos ouvir o som dentro de nós. Mas já que dificilmente eu ia estar em Lisboa na altura da estreia, o Sérgio dera-me uma cópia há meses para eu ver aqui, no Alentejo, em vésperas da estreia. Então, agora, dia 18, o filme vai chegar aos cinemas e tudo aquilo, levantado do chão como os troncos se levantam do chão, os montes se levantam do chão, vai parecer tão grande quanto de facto é, desde o começo, do som da gravilha na Grândola, das caras que emergem da escuridão como as cabeças esculpidas no Monte Rushmore. Porque o documentário do Sérgio é um grande épico, um épico em que os heróis são aqueles e aquelas que apanharam sarna nos arrozais de Alcácer, que perderam avós nas minas de Aljustrel, que passaram fome na ceifa, na monda, na apanha, de Cuba ao Baleizão, de Serpa a Pias, da Aldeia Nova de São Bento a Peroguarda, de Alcáçovas a Beja, dividindo uma sardinha preta, cabeça para um, rabo para outro, vendo irmãos, pais, avós partirem para a Suíça, para França, e que ao longo de tudo isto nunca deixaram de cantar, até aos filhos, aos netos, olhos bem nos nossos olhos. Alentejo, Alentejo é sobre essa honra, essa força de um por todos e todos por um que quando abre a boca é para que toda a terra saia por ali.

2. Foi com uma serenata de Cante Alentejano que se resolveu o casamento dos pais de Sérgio. No pequeno texto que escreveu para a apresentação do filme, ele conta como o pai, de origem alentejana, o enviou aos 12 anos para casa de uns camponeses no monte onde crescera. A casa de banho era fora de casa, o duche era a mangueira e no primeiro dia Sérgio comeu frango porque era visita: “Senti na pele o abismo que existia entre o mundo cosmopolita em que eu tinha crescido, primeiro no Brasil, depois em Paris, rodeado de exilados políticos, jornalistas e universitários, e o modo de vida pobre de uma pequena aldeia alentejana, onde toda a gente trabalhava no campo e, com sorte, aprendera a escrever o nome depois dos 40 anos. Perturbou-me e comoveu-me a generosidade das pessoas que me ofereciam absolutamente tudo o que tinham, sem ter nada.” Ao longo dos anos, vários dos seus filmes passaram em parte pelo Alentejo, e há três anos arrancou o projecto deste documentário, que agora se estende além da estreia, porque o próprio Sérgio montou uma Rota do Cante para dar a ouvir em Lisboa e no Porto vários dos grupos que estão no filme até Novembro, altura em que a UNESCO decidirá sobre a candidatura do Cante Alentejano a Património Imaterial da Humanidade. Também haverá sopa de tomate e beldroegas, bacalhau com coentrada, sopa de cação, coro de migas ou ensopado de borrego em vários restaurantes. 

3. Alentejo, Alentejo cobre várias gerações de Cante, desde bisavós que andaram descalços aos filhos de alentejanos numa escola da Damaia, porque há nada menos que 150 grupos activos, que tanto vão passando as modas antigas como compõem novas. Resume o Sérgio: “Existem modas de trabalho (ceifa, monda, varejo, arado); existe todo o tipo de modas de amor (púdicas, apaixonadas e brejeiras); existem modas ditas pesadas e modas ditas leves; existem modas pagãs e cantos religiosos (Cante ao Menino, Cante aos Reis, etc); existem modas paradas, modas de desfile e modas de baile. Mas também existem modas históricas (ao Rei D. Carlos, por exemplo) e uma enorme variedade de modas políticas (contra a PIDE, sobre a Guerra Colonial, modas em louvor a Catarina Eufémia, à Reforma Agrária, à Revolução... mas também modas em louvor a Salazar! — em arquivo na RDP). Todos os meses se criam novas letras e novas modas. Algumas falam claramente do Portugal de hoje. Ex: ‘Portugal está na Crise’ (no filme). Até falam da troika!” Porque há no Alentejo uma “fé generosa e panteísta”, diz o Sérgio. “Sinto que, para eles, a Senhora de Guadalupe, os Reis Magos, Catarina Eufémia e os rebanhos de ovelhas que passeiam na planície são santos de um mesmo altar.” Talvez a força do Cante venha desse mistério em que, na verdade, tudo é sagrado: o pão, a azeitona, o alho, o coentro, a terra, tanta terra abandonada. 

4. Morar no Alentejo é também aprender a reconhecer os vários silêncios, o que no sossego é abandono e partida forçada, por falta de trabalho, de alternativa. Nesta casa onde mal caibo eu e já couberam famílias, fui vendo as caras do filme aparecerem no ecrã. Nunca as vira, mas reconheço-as, da taberna onde uma noite entro para comprar cigarros e sou a única mulher; dos bancos onde os velhos se sentam imóveis, até mudarem de banco quando o sol avança; dos funerais que atravessam as ruas com a gente atrás, porque aqui a morte é de todos.

5. Lá estão no filme as tabernas onde o Cante nasceu, com o emblema do Glorioso, com a TV ligada. E de repente, por cima de tudo aquilo, da ausência das mulheres, do fechamento, ergue-se a voz do primeiro solista, depois a do segundo, depois o coro, e esse é o momento em que não há cabeça curvada, tudo é altivez frontal, comunicando directamente do início dos tempos, como suponho que terão feito os índios diante dos caubóis. Esses são coros de homens. As mulheres cantavam nos campos, que era o lugar diurno e exterior do Cante. Depois do 25 de Abril é que se começaram a organizar em grupos. Há vários no filme. 

6. A direcção de fotografia (João Ribeiro) e o trabalho de som (Miguel Moraes Cabral, Olivier Blanc e Armanda Carvalho) são tão prodigiosos que nem o meu ecrã conseguiu dar cabo disso. Há uma nitidez, uma clareza, uma densidade, uma justiça, e, por entre tudo isto, o arrepio de uma epifania. 

7. Um dos episódios passa-se fora do Alentejo, quando um dos coros masculinos vai actuar num piquenicão no Terreiro do Paço e mal consegue fazer-se ouvir, visto que o locutor está a fazer avisos, a anunciar directos, a promover um concerto de Tony Carreira. E ali estão aqueles homens, vindos de propósito do Alentejo com as suas peles, os seus lenços, os seus chapéus, vencidos por tontos, como tantas vezes acontece. 

8. E aquela mulher de Baleizão que acaba de fazer uma açorda, que nem sabe como ainda é viva, que de tão pobres as mulheres tinham uma saia, que quando chovia a tiravam para secar e ficavam de pelotas, porque nem roupa interior tinham, e nem dormir dormiam, porque se deitavam em sacas, e toda a noite eram pulgas e percevejos, além da fome. E aquele casal nos arrozais, malária, paludismo, águas podres. Nunca mais hei-de passar pelas planícies de Alcácer sem me lembrar de como crianças ou quase crianças andaram descalças na água podre. Já viram o tamanho do Alentejo? Nada em Portugal é tão grande.

9. Tantas histórias por contar. Há anos pensei fazer uma recolha em torno do PREC. Entretanto, gente que muito admiro se atirou a isso, imagino que em 2015, no aniversário dos 40 anos, venham documentos e documentários. Mas, quem sabe, ainda não saí do Alentejo, e quando sair é para ir voltando.

Foto
Cortesia Produção "Alentejo, Alentejo"

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