É só rock'n'roll

Martin Scorsese filma os Rolling Stones e o resultado é "só" um filme-concerto. Mas que filme-concerto!

Depois da Band, de Bob Dylan e dos blues, o que se pode esperar de Scorsese a filmar os Rolling Stones? Provavelmente, o que o mestre americano faz dos primeiros dez minutos de "Shine a Light": uma espécie de meta-filme-concerto sobre o que é filmar um concerto. Dez minutos durante os quais Scorsese encena tudo o que se passa nos bastidores do nova-iorquino Beacon Theatre antes do espectáculo começar, mas também tudo o que se passa antes que a rodagem do concerto comece - as discussões sobre o cenário do palco, o modo como as câmaras se vão (ou não) intrometer no ângulo de visão do público e dos músicos, a necessidade de saber a "set list" com a antecedência suficiente para se poder ter uma ideia de "mise en scène" cinematográfica. De repente, o que Scorsese está a fazer é - mais do que a pensar o filme - a mostrar-nos como se pensa um filmeconcerto, e como é possível gerir as contradições de se filmar a espontaneidade e a emoção de um concerto rock como se fosse uma narrativa pré-definida.

Esperem lá. Espontaneidade? Emoção? Rolling Stones? Quantas vezes se pode tocar "Satisfaction", "Start Me Up" ou "Jumpin'' Jack Flash" ao longo de 40 anos de maneira espontânea? Esse é o milagre que Scorsese regista, focando as suas 16 câmaras digitais de alta-definição num concerto "intimista" dos Stones num teatro de dois mil lugares e não numa das arenas impessoais em que o grupo hoje toca a maior parte das vezes.

O milagre de olharmos para uma banda que pensamos já não nos conseguir surpreender e dar por nós surpreendidos pela entrega que eles ainda colocam num concerto: Keith Richards como se só no palco se sentisse bem, Mick Jagger imparável com uma energia e uma entrega que não o achávamos capaz de ter hoje em dia. É muito fácil ser cínico, mas o que Scorsese nos mostra é que não se continua a partir em digressão quase 50 anos depois de se começar carreira sem se gostar daquilo que faz - e quando a câmara apanha Jagger a fazer pose para o telemóvel de uma espectadora, é impossível não achar que pelo meio de todo o calculismo esta gente gosta mesmo do que está a fazer.

Mais paradoxos: as entrevistas de época que Scorsese vai inserindo metronomicamente (aproximadamente uma a cada duastrês canções). Que estão lá para provar como não há entrevista, não há comentário, não há boutade que explique quem os Stones realmente são como a alquimia inexplicável que ainda hoje eles conseguem em palco - e como, por trás da imagem de "agremiação de malfeitores", se esconde um amor genuíno pela música e um respeito imenso por quem a transmite. (Exemplar: reparese como "Champagne and Reefer" com o "bluesman" Buddy Guy é um momento absolutamente electrizante que termina com Keith Richards a oferecer a sua própria guitarra ao músico, e como a presença de Christina Aguilera mais para o final do concerto é literalmente tolerada por todos os presentes como uma irritação temporária.)

É por isso - e também pela constante que a música dos Stones tem sido na carreira de Scorsese - que dificilmente se poderia encontrar melhor cineasta para filmar um concerto dos Stones apenas como um concerto (não foi certamente Hal Ashby quem o conseguiu em "Let''s Spend the Night Together", e o que os irmãos Maysles acabaram por fazer em "Gimme Shelter" foi outra coisa). E para pensar esse concerto como um filme. Grande paradoxo: apesar dos tais dez minutos de abertura (uma vertiginosa "master class" concentrada) que mostram como Scorsese pensou "Shine a Light", os 110 minutos que se seguem são "apenas" o filme de um concerto.

Extraordinariamente filmado, com a energia, a fluidez, a elegância de que Scorsese é capaz, gerindo as câmaras com mão de mestre e olhar de lince, montando com uma precisão imbatível - mas, ainda assim, "apenas" o filme de um concerto. E, depois do que Scorsese fez com Dylan em "No Direction Home", era legítimo esperar mais do que "apenas" um filme-concerto.

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