E se Chris Thorpe se vestisse de Hitler?

No segundo aniversário do espaço que tem no Porto, a Mala Voadora celebra as suas ligações com criadores ingleses. Do programa faz parte a peça-choqueConfirmation, o indigesto remix do comício de um suprematista branco que encosta o espectador médio à parede.

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Thorpe sabe que a resistência a tolerar a adopção de uma visão do mundo estranha e radical está demasiado activada para que possa ser aceite sem um desconforto que implique uma tomada de posição DR
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Numa das várias dezenas de apresentações que a carreira de Confirmation já acumula, Chris Thorpe foi interrompido por uma espectadora que questionava a legitimidade de alguém estar em palco a dar voz a uma visão do mundo que muitos (ela incluída) consideram abjecta. Confirmation é uma provocação consciente de Thorpe, encenada por Rachel Chavkin, cujo título desafia de imediato o espectador e o encosta à parede: não estará cada um de nós apenas disponível para se confrontar com opiniões e concepções do mundo que coincidam com a sua, buscando apenas uma validação da sua conduta e das suas ideias?

O dramaturgo e actor inglês quis quebrar este círculo que se alimenta a si mesmo em segurança. Escreveu assim uma peça, que também interpreta solitariamente, em que se força a acolher no seu corpo e no seu discurso tanto as suas próprias ideias, enquanto confesso liberal nos costumes, quanto as de um firme e extremado crente na supremacia branca e na negação do Holocausto (que entrevistou várias vezes). “Não apresento esses pontos de vista como sendo meus”, diz o autor, “mas não faço uma distinção entre estar a ser eu e a ser ele, e isso é complicado para as pessoas porque não há qualquer representação nem personagens – há momentos em que estou mesmo a ser ele, a dizer genuinamente as coisas que ele me disse e da maneira que ele as disse”. Muitas vezes não é claro quem está a falar (é um monólogo, lembremos, Thorpe fala pelos dois) e a quem podemos atribuir declarações mais extremistas e capazes de provocar uma resposta descontrolada num qualquer elemento do público. Aquilo que Thorpe faz é obrigar a que a plateia que tem diante de si tenha de lidar com os seus próprios preconceitos, com a consciência de que o está a fazer, e que, em casos mais radicais, se sinta tão profundamente ofendida que acabe por intervir.

Ao deixar que a interpelação da espectadora de Edimburgo interrompesse o espectáculo, Chris Thorpe desafiou ainda uma outra regra tácita do teatro: a de que o público deve manifestar-se apenas se for intimado a fazê-lo pelos actores. O engodo é dessa ordem: Thorpe sabe que a resistência a tolerar a adopção de uma visão do mundo estranha e radical está demasiado activada para que possa ser aceite sem um desconforto que implique uma tomada de posição (violenta, confrontativa, ou apenas de abandono da sala para domar qualquer destempero). A questão levantada é mais curiosa ainda ao lembrar as reservas de alguém como o notável encenador alemão Peter Stein relativamente aos monólogos, defendendo que a ausência de conflito nesse dispositivo fragiliza a sua filiação na linguagem teatral. Confirmation, no entanto, é tanto um monólogo quanto um diálogo difuso, e abre espaço a um conflito que pode instalar-se entre autor de um lado, público do outro.

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Confirmation estimula uma grande gama de reacções do público”, diz Thorpe ao Ípsilon. “As pessoas dizem mesmo coisas. O caso dessa senhora foi um pouco mais extremo, mas o espectáculo é uma experiência sobre o quanto estamos preparados para analisar os nossos processos de pensamento.” Antes de submeter outros a esta experiência, o próprio Thorpe encetou algumas conversas com extremistas políticos, focando-se particularmente num defensor da supremacia branca com um background social e geracional semelhante ao seu e procurou eventuais pontos de contacto. Foi o primeiro movimento para tentar colocar-se numa cabeça alheia e refazer os passos de pensamento dessoutro, não lhe perdendo o rasto; o mesmo movimento que tenta agora pedir ao público.

Só que é inevitável que, mesmo numa sala de teatro, o confronto com as crenças individuais possa resultar numa colisão frontal. “A reacção dessa senhora é muito válida perante o que quer que se tenha passado na cabeça dela diante de alguém que diz coisas horríveis e destrutivas, implicando questões raciais, conspirativas, anti-semitismo, negação do Holocausto”, reconhece Thorpe. “É por causa da radicalidade desse processo mental e do que provoca em cada um de nós que é quase necessário ultrapassar as opiniões para chegar à verdadeira experiência do que é o espectáculo.” O actor/autor não está propriamente interessado em debater a temática da supremacia branca ou qualquer outra. Quer apenas que isso obrigue a descobrir uma forma de relacionamento com quaisquer ideias (extremas ou não) que venham de outro e não se justaponham sem atrito às de cada um. Não há, por isso, qualquer promessa de um consolo final.

Uma Família Inglesa
Vencedor do Fringe 2014, Confirmation reforçou a luz dos projectores na direcção do actor e dramaturgo inglês que tem sido visita regular no percurso da Mala Voadora e que por isso integra este fim-de-semana, justamente com esta peça, o programa Uma Família Inglesa. Num gesto festivo destinado a comemorar o segundo aniversário da Mala Voadora.Porto, a companhia fundada por Jorge Andrade e José Capela estreia em Portugal Confirmation (sábado) e 600 People, um outro solo, desta vez por Alex Kelly, membro dos Third Angel (sexta). Uma Família Inglesa mostra ainda duas parcerias da Mala com os dois autores ingleses: Your Best Guess, criada no âmbito de uma residência de Thorpe no Porto; e What I Heard About the World, colaboração com Thorpe e os Third Angel que foi um caso de sucesso na internacionalização da Mala (aqui na sua centésima apresentação).

As pontes algo involuntárias da Mala Voadora com o teatro contemporâneo inglês começaram a tornar-se claras em 2004, pouco depois do arranque da companhia, quando Jorge Andrade frequentou um curso de encenação ministrado por Alex Kelly e Rachael Walton, no âmbito de um programa de criação artística da Fundação Gulbenkian organizado por António Pinto Ribeiro e Catarina Vaz Pinto. A rápida descoberta de afinidades entre Andrade e a trupe britânica levaria a uma primeira colaboração, What I Heard... Desde então, as co-criações foram-se desenvolvendo e contribuindo para o estabelecimento de uma partilha profunda de universos e processos artísticos. Uma Família Inglesa, programa bienal, formaliza esse percurso conjunto. Criando novos estímulos para um trabalho colectivo e novas situações em que o público possa seguir para casa com o seu dia claramente afectado.

Como acontece com Confirmation. Há dias em que a indefinição colocada em cena por Chris Thorpe o faz pensar que talvez não fosse má ideia se aparecesse claramente vestido de Hitler. Seria mais fácil odiá-lo e esquecê-lo.

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