É proibido dizer a palavra revolução

Há palavras de uso delicado no teatro português. Não são ditas entredentes, mas entre sorrisos de auto-ironia e auto-censura. Enquanto isso, no Chile, uma geração que pouco viveu das ditaduras quer fazer as suas revoluções a partir do teatro. E nós? Estamos mais atrás ou mais à frente?

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Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram (2014), pelo Teatro do Vestido BÁRBARA RAQUEL MOREIRA
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Tristeza e Alegria na Vida das Girafas (2011), pela Mundo Perfeito PEDRO CUNHA/ARQUIVO
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O Medo que o General não Tinha (2012), pela Palmilha Dentada PAULO PIMENTA

Dezembro, 2014. "Na noite de Natal, duas irmãs gémeas reúnem-se para receber o irmão, soldado, que as visita durante algumas horas. O Chile está em guerra com o Peru e com a Bolívia, e o jovem soldado fez uma pausa para visitar as irmãs. Está decidido a voltar à frente de combate, mas uma das irmãs quer convencê-lo a desertar e propõe-se executar um plano para o esconder". Este é o sumário de uma das primeiras peças de Guillermo Calderón, Diciembre, apresentada em Portugal em 2009 – um bom exemplo do tipo de fábula que, não deixando de ser fictícia, se assemelha bastante ao real. Distante no tempo e no espaço? Esperemos pelo Natal que vem.

 Desde há cinco anos que as obras deste dramaturgo e encenador chileno têm vindo a ser apresentadas em Portugal (pelo menos em Lisboa). O autor escreve para poucos actores e poucos recursos cénicos, imaginando situações concretas, mas fictícias, a partir de episódios específicos. Neva mostrava três actores de uma companhia de teatro de São Petersburgo que tentava ensaiar enquanto lá fora decorriam os massacres de 1905, Discurso era a fala na primeira pessoa de uma Michele Bachelet fictícia, Villa a conversa imaginária entre três raparigas adoptadas por torturadores chilenos.

Não é apenas Calderón (nem apenas o Chile) que tem a tentação de recontar a História para interpelar as políticas do presente. Se revirmos as sinopses das várias peças chilenas que cá têm chegado, nomeadante via Próximo Futuro, todas parecem profetizar um futuro ou contar uma versão não oficial da história, a partir de situações pessoais e episódios entre amigos ou familiares.

Os próximos tempos prometem. No Mirada, bienal de teatro ibero-americano de Santos, este ano o Chile é o país homenageado, com sete obras (entre 40 de vários países), entre as quais duas que viajam até Lisboa: A Reunião, do Teatro en el Blanco, recriando uma audiência de Colombo com a rainha Isabel de Espanha, a católica (dias 12, 13 e 14 no Teatro do Bairro); Otelo, a partir de Shakespeare, da Compañia Viajeinmóvil, sobre a violência contra as mulheres na América Latina (dias 16 e 17 no Teatro Nacional D. Maria II); A Imaginação do Futuro, da Compañia La Resentida, recriando os últimos dias de vida de Salvador Allende; O Homem Vindo de Lugar Nenhum, da Compañia Gran Reyneta, sobre um viajante no tempo; e O Cavaleiro da Morte, do Colectivo La Pato Gallina, a partir de um filme de 1925 sobre um guerrilheiro chileno do século XIX. É a imaginação ao poder? Em toda a América Latina surgem queixas contra as democracias liberais que foram implantadas pelos próprios ditadores, com transições suaves e amnistias gerais. Os oligarcas terão dito para os seus botões de ouro: façamos a democracia, antes que o povo faça a revolução. Hoje, por toda a América Latina, o povo diz: façamos a democracia, antes que os oligarcas a façam, ironiza Sérgio Luiz, da coordenação do festival, para explicar a contundência destas obras.

Será que nos revemos no espelho dos chilenos? Não seria a primeira vez. Em 1973, a notícia da deposição de Allende instalou-se em Portugal como um presságio. A ideia das senhas através da rádio que deu início às operações do 25 de Abril veio de um rumor sobre a resistência ao golpe. E Alfredo Cunha tinha bem presentes as imagens do ataque ao Palacio de La Moneda quando fotografou os primeiros soldados no Terreiro do Paço, revelou recentemente à Notícias Magazine. Mas aqui a revolução foi feita antes que outros a fizessem, como no Chile.

 

Fantasias lusitanas

Em Portugal, os últimos anos viram várias peças de teor político – ou revolucionário – levadas à cena. Por exemplo, entre outros: em 2009, Dura Dita Dura, do Teatro do Ferro; em 2010, 1974, do Teatro Meridional; em 2011, Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, do Mundo Perfeito; em 2012, O Medo que o General não Tinha, da Palmilha Dentada, Três Dedos Abaixo do Joelho, do Mundo Perfeito, e Monstro, do Teatro do Vestido; em 2013, Dimas e Gestas, da Palmilha Dentada, e Labor, do Teatro do Vestido; em 2014, Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram, do Teatro do Vestido, e Tropa-Fandanga, do Teatro Praga. Um teatro que versa a História, e a nossa relação com os factos históricos, mas de que maneira? Grosso modo, o motivo foi a celebração de datas e efemérides. A revolução parece ter ido parar aos teatros, onde foi mostrada como se estivesse num museu, com a luta política a tornar-se uma coisa, um bem, um património que assinala datas e lugares históricos mais ou menos oficiais, seja o olhar mais irónico ou mais sentimental.

A essa monumentalidade contrapõe Joana Craveiro o novo projecto do Teatro do Vestido, Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, que trata “da relação que as pessoas têm com os acontecimentos do 25 de Abril, sobre a subjectividade dessa relação, mais do que sobre os factos”. A criadora tem vindo a coleccionar objectos e testemunhos pessoais que apresenta na forma de uma palestra-performance, inusitada porque mistura a apresentação dos documentos com autobiografia e alguma ficção. “A geração que fez o 25 de Abril teria muito a trazer com a sua autobiografia. Pessoas que não participaram muito activamente na resistência desvalorizam o seu próprio papel. Em Portugal fez-se a história dos protagonistas, e as pessoas comuns ficaram como… o pano de fundo, que fazia as greves e as manifestações… A minha geração pode ajudar – não quero soar condescente, mas é algo que estas pessoas nunca farão por si só – a trazer à luz esses testemunhos para compor um mosaico de uma história alternativa, uma pequena história.” É o que acontece nas conversas após cada apresentação, em que invariavelmente os espectadores relembram que no tempo da revolução “era assim: ficávamos a discutir as coisas”.

Como pode o teatro interferir nessa memória? “Vejo um papel muito concreto para o teatro. Quando eu digo ‘25 de Novembro de 1975’, acontece sempre qualquer coisa na sala. As pessoas ficam inquietas, por diferentes razões. Há quem ache que é História, mas eu acredito que é importante para compreender o presente.”

Tiago Rodrigues, do Mundo Perfeito, espera que os espectáculos sirvam para criar relações novas entre as ideias dos espectadores. Em Três Dedos Abaixo do Joelho, feito a partir dos relatórios da censura ao teatro, tentou engolir os censores, com “a ideia de que podemos tornar censores em dramaturgos": "É o que eles são, estamos mesmo a transformar, involuntariamente, o seu estatuto; só o teatro pode fazer isso.” A pesquisa e a exposição são ferramentas básicas: “Há um lado jornalístico de pesquisa e reportagem que me interessa muito, entrevistar, falar com pessoas, ler; e depois parar e fazer essa outra coisa que é atropelar a realidade como artista, como ficcionista, que pode seguir o caminho que lhe apetecer.”

Em Dimas e Gestas, Ricardo Alves, da Palmilha Dentada, pôs dois crucificados, condenados por dívidas, a contar anedotas. Apesar de alegórica, a situação era entendida de modo muito concreto pelos espectadores. Mas no espectáculo de homenagem ao general Humberto Delgado, uma colagem de monólogos, não foram tanto a situação e a narrativa que lhe interessaram, mas “o processo mental do espectador”: “Não estou a contar uma história, mas a expor uma série de factos, e a mostrar que há um espaço de intervenção individual, que depois tem repercussões no colectivo. Começa com uma ansiedade do momento, ter um plasma, depois passa para o ‘Obviamente, demito-o!', uma simples frase que conseguiu pôr toda a gente a questionar, mostrando esse valor individual, louco, voluntarista.”

 

Ironias da revolução

Estes três dramaturgos e encenadores usam factos reais contados com ironia como ferramenta básica para pôr em causa o mundo. Diz Ricardo Alves que criou a Palmilha Dentada por uma necessidade de intervenção cívica:  “O público que menos me interessa são os meus amigos e a família, já lhes digo o que penso no café, para isso não fazia teatro. Interessa-me o outro público, e por isso calha-me embrulhar no humor o que de outra maneira podia ser muito desagradável, nada cativante. A transformação do mundo é de mentalidades… Posso inquietá-los, mas não posso chegar às conclusões por eles.”

No final dos anos 90, Tiago Rodrigues estreou Zapatistas, um espectáculo com duas versões, antes e depois da viagem ao México. Na primeira versão, “havia uma relação muito espectacularizada sobre aquela realidade": "Muitas vezes a ingenuidade empurra-nos para uma solenidade, como se tivéssemos algo importante a dizer… Podes salvar o mundo, mas não te leves demasiado a sério.”

A pergunta Quando é que a revolução acabou?, título de uma das sete palestras do Museu do Teatro do Vestido, “não é de um olhar desencantado, mas é uma busca, apresentando um olhar auto-irónico sobre o que vimos acontecer”, diz Joana Craveiro. “Trabalho directamente com testemunhos e comprometo-me a trabalhar esses testemunhos com respeito. Faço comentários, e a ironia transparece, mas apresentamos o material como ele é.”

Ironias à parte, os criadores de teatro fazem parte de uma comunidade política na qual participam activamente, e a distanciação parece ser uma maneira de começar uma conversa com o público. Contar histórias, reproduzir testemunhos e mostrar provas parecem ser as estratégias preferidas destes criadores, ao contrário das fábulas e das personagens de outros teatros, como o chileno.

A geração que começou a fazer teatro no final dos anos 60, e que tomou as rédeas do sistema teatral em 74, um dia cansou-se. No lugar da arte militante e panfletária, ficaram cinismo, paródia e ironia, que se tornaram uma questão de etiqueta social, sinal de ter visto mundo. Joana Craveiro, do Teatro do Vestido, tem uma hipótese: “Nos anos 80, algo aconteceu, que deve ser a explicação para se terem fartado de plenários, de reuniões, de discutir tudo… nos anos 90, há um revisionismo histórico nos meios de comunicação social – o Sérgio Tréfaut, por exemplo, nunca conseguiu fazer a exposição de fotógrafos internacionais sobre o 25 de Abril, ninguém estava interessado. Quando é que a revolução acabou? Uma das espectadoras disse que foi em 1980, quando o Otelo teve 1% dos votos. Para ela, foi aí o fim, não foi em 75, não foi em 76, foi em 1980.”

É a partir daí que temos de retomar a conversa. A revolução foi feita. É preciso pô-la outra vez em cena.

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