É preciso desligar a música!

Vivemos imersos na cultura do ruído. Não é apenas a música ou a TV ligada. São os motores. Os altifalantes. Os alarmes.

As grandes transformações culturais e comportamentais são lentas. Uma das que tive a sorte de assistir no meu tempo de existência prende-se com a nossa relação com o ambiente, a ecologia, a natureza. Há 20 anos ia-se à praia e havia lixo por toda a parte. A repartição de lixos era utopia. Fumava-se em todo o lado. E o aquecimento global não era uma questão. 

Claro que algumas destas conquistas não estão consolidadas, mas passaram a estar na ordem do dia e os cidadãos estão conscientes delas. Mas ecologia não é apenas resíduos ou efeito estufa. É também som, ruído, barulho, omnipresença de música nos espaços públicos. E nesse campo, apesar de eventos como o recente Lisboa Soa – que decorreu em Setembro pela primeira vez – que pretendem mentalizar-nos para as questões sociais do som, ainda está quase tudo por fazer em Portugal.  

Há poucos meses, em Roterdão, na Holanda, ao entrar na Estação Central da cidade fiquei perplexo pela quase ausência de ruído num espaço público que por norma é barulhento pela combinação de milhares de pessoas, altifalantes, motores ou máquinas. Ali a concepção arquitectónica, o design e a iluminação do espaço atenuam o ruído. Percebe-se que arquitectos, urbanistas ou sonoplastas trabalharam em conjunto, pensando o espaço a partir da acústica e propriedades sonoras.

Ali parece existir a consciência que vivemos rodeados de ruído e isso afecta o ambiente, a qualidade da comunicação e a nossa saúde física e psicológica. Essa compreensão é limitada em Portugal. Não somos o único país onde música de fundo impera em bares, restaurantes, centros comerciais, lojas, transportes ou aeroportos. Ou onde as pessoas se sentam de manhã à noite, em cafés, de frente para as televisões. Ou onde a iluminação dos espaços públicos (os restaurantes são um exemplo) é descuidada (e na verdade luz e som são indissociáveis, bastando entender que os indivíduos tendem a falar mais baixo com iluminação envolvente).

Não tenho dados científicos para o afirmar, mas de uma forma impressionista diria que aqui esses ambientes são notórios e esses comportamentos são intensos. Vivemos imersos na cultura do ruído. Não é apenas a música ou a TV ligada. São os motores. Os altifalantes. Os alarmes. Os locais de diversão nocturna até de manhã. O falar alto. Uma cacofonia que se tornou normalidade, talvez porque associamos o rumor ao prazer ou à festa. De alguma forma reproduzimos isso no quotidiano, como se acreditássemos que sendo barulhentos legitimássemos perante os outros que somos bem-sucedidos ou que estamos a desfrutar de algo.

Ninguém sabe como tudo começou. Talvez mimetismo. Mas a verdade é que hoje esses hábitos estão enraizados. Entra-se num espaço público e vemos as pessoas fascinadas com o olhar dirigido para os ecrãs, ou absortas pela música que não pára, como se existisse medo do silêncio, que obriga a pensar. É como se necessitássemos de som à volta, em todo o lado, a toda a hora, para confirmar que existimos, o que paradoxalmente nos torna indiferentes perante a verdadeira experiência da música.

Sim, eu sei, as mudanças a sério são lentas. Mas espero que seja possível assistir à mudança de hábitos em relação ao som que nos circunda e que por vezes mais se parece substituir ao ar que respiramos. Não é preciso ser-se radical. Nem sempre é preciso desligá-lo, mas é necessário enquadrá-lo, pensá-lo, estarmos conscientes das suas faculdades e efeitos nocivos, para que possamos ter com ele uma relação mais saudável.

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