É mesmo admirável o novo mundo de Batida

Batida já não é simplesmente ponte entre Luanda e Lisboa, entre a tradição e o presente. Abriu-se ao mundo. Dança, diverte, consciencializa, mistura, surpreende. Está tudo em Dois, o novo disco.

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19 de Outubro de 2013, Marselha. Em palco está Batida, participante num dos concertos do Africa Express criado por Damon Albarn, dos Blur, como ponto de contacto entre músicos africanos e ocidentais. Batida, que é o luso-angolano Pedro Coquenão. Batida, que esteve naquele palco em Marselha como Pedro Coquenão gosta que a Batida seja. Um ano depois, quando se prepara para lançar o seu novo álbum, Dois (edição esta segunda-feira), conversamos com ele no seu covil e centro de operações, um estúdio instalado num complexo de garagens em Lisboa.

Enquanto nos fala com entusiasmo torrencial do Quénia por onde passou, da Luanda a que sempre regressa, da Lisboa que habita ou das memórias que servem sempre, sempre, de rastilho criativo, Pedro Coquenão dirá: “Acho que somos mais interessantes se abraçarmos tudo. Acho que o mundo é mais interessante se abraçarmos tudo”. Pois bem, naquele palco em Marselha estava tudo abraçado.

“Tinhas ali a canalha toda”, conta. “O baterista do Damon [Albarn], o Duncan [Lloyd, dos Mäximo Park], o percussionista de Baaba Maal, um puto que é o melhor beatboxer que já ouvi [o inglês Reeps One], o Manuel Pinheiro, dos Diabo na Cruz, a quem pedi para levar batuques tugas – pensei que se me estavam a convidar simplesmente como um tipo africano, então iria levar também batuques portugueses”. E depois, enquanto tocavam uma versão de Magnificent seven, dos The Clash, e enquanto o público soprava os apitos que Coquenão atirara do palco, apareceu Damon Albarn a dançar e a apitar, a sentar-se ao piano quando, depois da versão dos Clash, chegou Alegria, uma das canções mais emblemáticas do primeiro álbum de Batida. “O mundo é mais interessante se abraçarmos tudo”, repetimos – pouco tempo depois, Albarn convidaria Batida a fazer a remistura de Heavy Seas of Love, uma das canções de Everyday Robots, seu álbum a solo.

Dois, o álbum que sucede a Batida (2012), a versão melhorada para edição internacional de Dance Mwangolé, o álbum editado em 2009 através do qual descobrimos a música deste criador nascido em Angola e crescido em Portugal, é realmente o disco em que Pedro Coquenão abraça tudo. Dizemo-lo porque o que nele ouvimos é uma confluência de tempos, um encontro de gentes, uma síntese luminosa e inspirada criada por um homem a quem muito aconteceu nos últimos cinco anos.

Ele que fora homem da rádio tornou-se músico a quem abriram os arquivos angolanos da Valentim de Carvalho. Cruzou os sons de ontem com palavras e ritmos de hoje e daí resultou Dance Mwangolé. Por cá, não demorámos a prestar-lhe atenção. Lá fora, estavam atentos. Em 2012, Dance Mwangolé foi editado em nova versão, rebaptizada Batida, pela inglesa Soundway, editora de destaque na recuperação de música africana, asiática ou sul-americana das décadas de 1960 e 1970. Batida foi a primeira banda actual a ser lançada pelo selo. E Pedro Coquenão, a partir desse momento, começou a correr ainda mais mundo, levando Europa fora um espectáculo exuberante onde danças tradicionais se tornam balanço muito actual, em que marimbas e máscaras tribais surgem lado a lado com latas de gasóleo, bidões, grades de cerveja angolana. Dançarinos e cantores, festa lúdica e intervenção política (a máscara de José Eduardo dos Santos anda por ali e não é bonito o que lhe mostram). Pedro Coquenão é o mestre-de-cerimónias, o orquestrador. Em palco e, obrigatoriamente, fora dele.

Regressamos à garagem-estúdio lisboeta. Passamos em revista os dois últimos anos de Batida, aqueles em que nasceu Dois, álbum magnífico. Nele, o afrobeat angolano de Matadidi Mário, todo ele luxúria rítmica de metais e wah-wahs transforma-se no alerta de Pobre e rico, primeiro single de frase certeira perante o mundo que temos hoje: “Não há branco, nem mulato, nem preto. O que há? Pobre e rico”. Aqui, o colaborador habitual A.F. Diaphra lança spoken-word bem medido sobre o ritmo bamboleante que tem como esqueleto o Ghetto defendant dos Clash (Mick Jones ouviu, adorou, aprovou). Em Dois, o benga queniano de ontem, cantado por um músico queniano de hoje, Cannibal, revela a mesma capacidade de síntese que Coquenão mostrava em Dance Mwangolé – não haverá pista de dança que resista a Mama Watoto.

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Dois é música múltipla e vibrante, riquíssima: impregnada dos sons e das lições que a História legou, mas de pés fincados no presente. Basta ouvir o ritmo quebrado e trepidante de Luxo, o segundo single, em que Coquenão juntou o sul-africano Spoek Mathambo, o angolano Sacerdote e o inglês Duncan Lloyd - prega-se com humor que, para acabar com a pobreza, melhor será estender o luxo a todos: “Também queremos Jaguar”, exige Sacerdote. Avançamos no álbum e descobrimos uma melodia tocante do angolano Mamukueno, falecido em Agosto, como mote para o Lá vai Maria cantado por Ikonoklasta, ele que dá voz activista ao andamento funk digital requebrado, “sembado”, de Fica atento – sem papas na língua perante a actualidade angolana: “à porta da maternidade, grávidas dormem ao relento / o tenebroso futuro que aguarda esses rebentos”.

A gastronomia de Dois
Confirma-se. Dois, com subgraves em convívio com órgãos vintage, guitarras límpidas e som orgânico retalhado na era electrónica, é tão novo quanto familiar. É a Batida que descobrimos há cinco anos e que não tardámos a admirar. É, também, um convicto passo em frente. “No primeiro disco estava a sobreviver para o acabar, porque nunca tinha feito um. Foi um álbum de dores de crescimento. Este foi mais intencional. Já dominava melhor o que estava a acontecer. É como cozinhar”, ilustra. “Há pratos em que misturas tanta coisa que, a determinado momento, já não sabe a nada. Mas se souberes como conjugar um bocado de caril, um bocado do doce, do porco ou do chouriço, aquilo casa tudo”. Está apresentada a gastronomia de Dois.

Pedro Coquenão fala-nos das dificuldades de contextualizar o que é Batida no exterior, quando fala com quem “não tem as referências das ex-colónias, dos traumas do colonialismo, do 25 de Abril” – felizmente, a música tem discurso eloquente, como atesta o sucesso dos concertos. Fala-nos da vontade demonstrada (mas para ele desnecessária) em encaixá-lo numa categoria específica: Batida é banda? É trabalho de produtor? É obra de DJ? Encontra uma analogia: “É tipo Woody Allen. Ele está lá, em quase todos os filmes, e é sempre ele. Vêm outros actores, ele conhece pessoas incríveis e gosta de trabalhar com elas, mas os filmes são ele e não há grande conversa”. Dito isto, explica novamente. Viaja pela memória. Conta como, ao falar com dois primos com quem passou a infância, estes lhe recordaram os espectáculos caseiros que inventavam em encontros de família. Tinham sete, oito anos e interrompiam os jantares para apresentarem canções vestindo roupas improvisadas com o que havia, fazendo teatro e tocando marimba.

“Aquilo era uma brincadeira, mas para nós era mesmo importante”. A ideia de mistura de expressões manifestava-se logo na infância. Mais tarde, quando começou na rádio, não era pouco habitual pôr no ar filmes que achasse interessantes – “permitia imaginar de outra forma”. E quando filmou o documentário É Dreda Ser Angolano, produção da sua Rádio Fazuma, montou-o enquanto programa de rádio. “Essa ideia de tornar tudo a mesma coisa sempre me agradou”, confessa. Batida é ainda fruto dessa pulsão. Do primeiro álbum para este Dois, sobressai porém uma diferença. Agora, em vez do mergulho nos arquivos, a vida a correr.

Ou seja, ir ao encontro de Matadidi Mário para lhe mostrar Pobre e Rico – o músico veterano, perante o início soluçante, a perguntar se a canção estava riscada mas depois, ultrapassada essa barreira geracional, a admirar o que Coquenão fizera e a dar-lhe a sua bênção. Ele a lembrar-se das raízes punk e rock e a pedir a Duncan Lloyd para dar gravidade eléctrica a Luxo. Coquenão a aproveitar uma residência em Nairobi, em 2013, no âmbito do projecto 10 Cities do Goethe Institut, e a ver perante si um dos guitarristas fundadores do benga (o equivalente queniano ao semba angolano), Nelly Ochieng, para dar voz e guitarra ao que viria a ser Chat with Mr. Ochieng. Isso ou descobrir que havia outro lado, mais sensível, menos personagem de um teledisco hip hop americano em Cannibal, estrela local que surgira a disparar “pussy” a cada três palavras e que acabou a gravar essa Mama Watoto impregnada de velhas memórias da capital do país africano.

Não, não precisamos de encaixar Pedro Coquenão. Precisamos de ouvi-lo. A ele, a Batida, a este Dois que passa a ser mais que ponte entre Luanda e Lisboa. Abriu-se ao correr do mundo e ao talento que Coquenão procurou ou com o qual se foi deparando. Batida dança, diverte, consciencializa, mistura, surpreende. Vive verdadeiramente. Está a ser um prazer muito grande acompanhar esta vida.

 

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