É hora de largar a voz de Inverno

Para que serve o que não serve para nada?

A Orquestra Metropolitana de Lisboa encomendou a Alice Vieira um pequeno conto para Eurico Carrapatoso musicar. Alice Vieira escreveu "A Arca do Tesouro", um texto sóbrio e sábio, que se insurge contra esta coisa dos "relógios a mandar em toda a gente". E o compositor Carrapatoso foi capaz de fazer uma música simples, bela e comunicativa para a história de Maria e da sua caixa azul, uma caixa que "não serve para nada". Mas há-de servir...

Carrapatoso escreveu uma música que não procura nenhuma ruptura de linguagem, optando por levar-nos pelos caminhos tradicionais do conto musicado, por exemplo de obras como "O Pedro e o Lobo", de Prokofiev. Mas, na verdade, as referências mais próximas (conscientes ou não) podem encontrar-se em peças radiofónicas inglesas ou no cinema americano. "A Arca do Tesouro" é também, afinal, uma bela peça radiofónica, para todas as idades, composta a partir da voz e do ritmo de leitura de Luís Miguel Cintra, que gravou o disco que acompanha o livro "lançado" neste agradável concerto nos jardins do Palácio de Belém. Para maior conforto, faltaram apenas mais alguns lugares sentados, porque ficaram algumas dezenas de pessoas em pé.

No domingo o leitor não foi Luís Miguel Cintra (sê-lo-á dia 31 de Julho no Festival de Música de Alcobaça). Desta feita foi a própria Alice Vieira a ler o texto. E que bem! Com uma voz próxima, de quem conta o conto aos netos e os consegue cativar, atenta à música e às entradas do maestro, Alice Vieira foi, com a música de Carrapatoso que tem o pathos mínimo necessário para emocionar, uma leitora brilhante do seu próprio texto. E nem sempre é assim tão óbvio que o escritor de um texto seja seu leitor exímio.

A música é por vezes ilustrativa, em breves momentos, mas sem qualquer excesso desnecessário, mantendo-se fiel aos movimentos do texto e da sua linha de leitura. A composição nunca se impõe ao conto: segue-o antes com atenção e vem um pouco mais à tona em breves momentos, suficientes para soltar a emoção de um texto tão escorreito e bem escrito. Difícil esconder a lágrima no canto do olho, reconheciam vários espectadores à saída.

"A Arca do Tesouro" contém também, à sua maneira, simples e tradicional, uma aspiração emancipadora - que tudo não esteja dependente do princípio da utilidade imediata, do "time is money", das pressas e das correrias, da imposição dos horários e do trabalho (ou da falta dele).

"É hora de as pessoas largarem a sua voz de Inverno", propõe o texto no fim, depois de um gesto redentor do pai que oferece um presente à filha. Talvez não baste isto para mudar a vida. Mas pequenas belas simples arcas como esta podem ajudar.

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