É esta sexta-feira que começa o festival de Avignon?

A abertura está comprometida e agora ninguém arrisca o que se segue no mais importante festival europeu de artes performativas. A greve marcada para esta sexta-feira pesa como uma ameaça para a nova direcção de Olivier Py, que fala de um festival universalista.

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Mai, Juin, Juillet, de Christian Schiaretti, recupera os eventos de 1968 Michel Cavalca
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Olivier Py, director do Festival de Avignon Carole Bellaïche / Festival d'Avignon

É a questão dos cinco milhões de euros: Avignon ou Avigoui? Ninguém sabe o que se vai passar a partir desta sexta-feira. O voto favorável à greve, anunciado ao fim do dia de quinta-feira, deitou por terra o esforço feito pela organização do Festival de Avignon para minimizar o impacto concreto das acções de protesto, que, desde há um mês, os profissionais intermitentes do espectáculo vinham mantendo.

O apelo à “greve massiva” feito no fim do mês de Junho pela CGT, a confederação sindical que se opõe ao acordo laboral de 22 de Março, surtiu efeito, apesar dos apelos da organização do festival. Assim, num gesto inédito, a abertura do mais importante festival de teatro de França e um dos mais relevantes do mundo fica adiada para sábado. Fica por saber se a greve será votada diariamente, protegida pelo pré-aviso lançado pela CGT para todo o mês de Julho, ou se é um gesto simbólico que quer forçar o governo a recuar na assinatura de um acordo que desde a sua apresentação, e sobretudo no último mês, opõe os profissionais do espectáculo, artistas e técnicos, e o governo.

Os ânimos estão exaltados, a tensão é muita, ninguém sabe como pode terminar o braço-de-ferro. Em causa está o novo acordo laboral que reduz as contribuições do Estado aos profissionais quando se encontram sem trabalho, num sistema que é único na Europa e que divide a opinião pública francesa.

A ironia é que esta edição do Festival de Avignon é a primeira para o novo director, o encenador e dramaturgo Olivier Py, que se manifestou contra a assinatura do acordo, e acontece onze anos depois de a mesma crise ter provocado a anulação do festival, naquela que era a primeira edição assinada pela dupla Vincent Baudriller e Hortense Archambault. A ex-co-directora encontra-se agora mandatada pelo governo de Manuel Valls para negociar com todos os parceiros sociais, e o palco da batalha descola-se para Avignon com toda a força que os movimentos sindicais conseguirem.

Se tudo correr mal e o festival for anulado – uma situação excepcional que, se se verificou em 2003, não tinha sequer surgido em 1968, ano de todas as mudanças (e na presente edição, nem de propósito, há uma peça que explica o que então aconteceu: Mai, Juin, Juillet, de Christain Schiaretti) –, a dimensão do problema não afectaria apenas, e directamente, a cidade e os seus hotéis, restaurantes e serviços, que, estima-se, facturam cerca de um milhão de euros por dia.

O impacto directo, avisou Olivier Py, sentir-se-ia nas programações dos anos seguintes, na ordem dos cinco milhões de euros, já que deixou de haver, tal como em 2003, uma cláusula de salvaguarda que permitia o refinanciamento do festival após as perdas resultantes da devolução dos bilhetes e do impacto negativo provocado pelas despesas já efectuadas (por exemplo, cachets das companhias, deslocações e reservas de hotel).

Isto excluindo a perda de palco mediático para as produções que se deveriam estrear e ser vistas por mais de 700 profissionais da imprensa mundial, e testadas pelos programadores que deverão confirmar se as suas apostas se revelaram, ou não, certeiras.

Os números não dizem tudo, mas dizem alguma coisa: em 2013, o orçamento do festival foi de 12 milhões de euros. Por isso, no início da semana, 80% dos profissionais do festival In votaram contra a anulação e a favor de protestos simbólicos, como a manutenção de um quadrado de pano vermelho preso à roupa, inclusivamente por cima dos figurinos dos espectáculos.

Desde esta sexta-feira que está tudo em aberto. Nos últimos dias, multiplicaram-se, tanto quanto se extremaram, os apelos a medidas claras que permitam que o festival aconteça. Por um lado, a pressão sobre o governo foi aumentando para a concretização de um novo acordo, ao mesmo tempo que a CGT, a unidade sindical que mais se tem destacado na luta contra o acordo de 22 de Março, apela a acções que vão para lá da dimensão simbólica.

Enquanto isso, os profissionais do festival Off, a programação paralela, que é a verdadeira força viva do teatro francês (este ano são mais de mil espectáculos em cerca de 50 espaços diferentes), marcou uma manifestação silenciosa para a tarde desta sexta-feira, substituindo assim a tradicional parada por um protesto que reunirá, espera a organização, um conjunto significativo dos seis mil profissionais envolvidos que dependem financeiramente do sucesso da sua presença no festival.

Contudo, ninguém sabe realmente o que poderá acontecer. Apesar de uma assembleia-geral dos profissionais do Off ter votado na semana passada pela não anulação do festival, o jornal Libération dava conta do relato de um fotógrafo da AFP que descreveu a invasão de um grupo de intermitentes do Off que impediram a continuação do ensaio da peça O Príncipe de Hamburgo, encenada por Giorgio Barberio Corsetti (figura que nos habitámos a ver no Teatro Nacional São João), cuja estreia, esta sexta-feira, marcaria o arranque do festival. “Seguiram-se discussões exaltadas com os actores que se tinham demonstrado solidários com o movimento através da colocação de um quadrado de pano vermelho no figurino”.

O site da revista Inferno descreve o ambiente como tenso: “Parece que as coisas em Avignon são bastante menos simples. Uma certa franja de intermitentes continua a preferir o confronto directo e o impedimento dos espectáculos”.

Se tudo correr bem, mesmo com acções pontuais de protesto – e para além dos vários debates já marcados para discutir o estatuto dos intermitentes –, esta edição ficará marcada por uma viragem após dez anos de aposta num festival que não distinguia as disciplinas artísticas e, menos ainda, a nacionalidade dos criadores. Olivier Py representa o regresso de um artista à direcção de um festival criado por outro artista, o encenador Jean Vilar, o adorável fantasma que continua a ser incensado a cada ano.

E se nos últimos dez anos a direcção de Vincent Baudriller e Hortense Archambault havia apostado em artistas associados (por ordem de entrada em cena: Thomas Ostermeier, Jan Fabre, Josef Nadj, Romeo Castelluci e Varelie Dreville, Christoph Marthaler e Olivier Cadiot, Wajdi Mouawad, Boris Charmatz, Simon McBurney, Dieudonné Niangouna e Stanislas Nordey), Olivier Py chama a si a responsabilidade de assinar três peças, das quais é também autor (Orlando ou l’impatience, Vitrioli e La jeune fille, le diable et le moulin), para além de várias leituras de textos.

E depois aposta num conjunto de nomes novos, essencialmente do teatro, escolhas que prolongam algumas das pistas que já havia lançado quando era director do Théâtre de l’Ódeon, em Paris. Diz Py: “São os artistas que reinventam o festival e gostaríamos, para além de bons espectáculos, que esta edição, feita de vozes emergentes ou reconhecidas que vêm pela primeira vez ao festival, o pensassem com um olhar novo, inventando um novo público”.

Mais de vinte e cinco criadores estão, por isso, pela primeira vez no festival e Olivier Py sublinha a importância de mais de metade deles terem menos de 35 anos. A selecção de esperanças inclui os nomes de Gianina Carburaniu, Clément Dazin, Fabrice Murgia (aposta pessoalíssima de Py, recentemente vencedor, aos 31 anos, do Leão de Prata da Bienal de Veneza), Lazare Herson-Macarel (que faz um Falstaff para crianças), Nathalie Garraud, Thomas Jolly (que fará Henry IV, de Shakespeare, num espectáculo com a duração de 18 horas), Satoshi Miyagi (que arrisca encenar o poema épico indiano Mahabharata no mesmo local onde, em 1985, Peter Brook marcou, com o mesmo texto, a história do teatro mundial), Dimitris Karantzas, Marco Layera, Antú Romero Nunes, Julie Nioche, Matthieu Roy, Alexandre Singh, Arkadi Zaides, Seb Martel e Lola Lafon.

São estes que farão regressar Avignon à ideia de um festival apostado no texto, na mitologia, na metáfora, no simbólico e na palavra. Ao lado deles, nomes como Alain Platel, Thomas Ostermeier (que encena O Casamento de Maria Braun, de Fassbinder), Ivo van Hove (que adapta o filme Vontade Indómita, de King Vidor) e Emma Dante (que apresenta As Irmãs Macaluso, que estará em Almada logo a seguir) são figuras de suporte a uma programação que quer defender os valores do festival: “o universalismo ”.

O apelo de Py é claro: “Não devemos pensar o mundo como tendo um interior e um exterior, com um in e um off, uma inclusão e uma exclusão, mas como uma viagem incessante do longínquo até nós e de nós até ao longínquo. E talvez isso surja na Cour d’Honneur quando, sob o céu estrelado, um poeta alemão romântico se fizer ouvir, interpretado por actores franceses e belgas a partir da imaginação de um encenador italiano que pensou um mundo onde o imaginário é a acção e onde a acção é, verdadeiramente, irmã do sonho”.

Mas quem sabe como se vai poder dormir a partir desta noite?

 

Crítico de dança e de teatro

 

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