E então o ministério?

As forças políticas em geral ainda não colocaram a devolução à cultura do indispensável estatuto ministerial como prioridade da próxima estratégia governativa.

Os autores e outros agentes culturais viveram nestes quatro anos em Portugal dificuldades, privações e contrariedades ainda não devidamente inventariadas. Extinguiram-se apoios, reduziu-se o mercado, desapareceram companhias de teatro e outras entidades e estruturas, mas continuou a criar-se cultura, apesar da carência, com imaginação e criatividade, muitas vezes somente com o magro apoio financeiro das autarquias, já de si tão afectado pelo ciclo austeritário que tanto nos empobreceu e afectou também psicologicamente, como é fácil de comprovar.

Nenhum país vive uma crise com a dimensão da que continua a atingir-nos e sai incólume deste processo. Deixámos de ter Ministério da Cultura e passámos a ter secretário de Estado, na dependência do primeiro-ministro, houve legislação importante largamente adiada e só agora parcialmente cumprida, mas continuou a faltar quase tudo, porque se tornou claro que a cultura, por mais méritos e virtudes que lhe queiramos e saibamos atribuir e reconhecer, nunca será uma prioridade estratégica, nem mesmo associada à oferta turística, que envolve o nosso poderoso e diversificado património gastronómico. E vale a pena comparar de que forma os países igualmente atingidos pela crise, como a Irlanda, resolveram os seus compromissos no domínio da cultura, desafiando os autores e os artistas, desde logo os do cinema e do teatro, a não se perderem na galáxia anglófona e a ficarem na sua terra a ajudar os criadores e agentes culturais mais jovens. Actores como Colin Farrell e Gabriel Byrne bem assumiram essa função, com dedicação e espírito de missão. E até da Islândia se poderá falar nesta matéria.

E nós, nesse domínio, o que fizemos? Uma parte dos mais de 300 mil que partiram sabe-se lá para onde também pertencem a este sector que tão atingido continua a ser em cada dia que passa.

O resto faz parte da crónica dolorosa destes anos que, quase em fim de ciclo governativo deixam ainda muito por contar, reconhecendo que, nesta fase final, o secretário de Estado (houve outro antes, mas nem dá para lembrar quem foi) se esforçou por dar sinal de vida e deixar uma marca de presença, desde logo com a aprovação da Lei da Cópia Privada que permitirá criar o Fundo Cultural que irá permitir criar obras que mais ninguém apoiaria ou patrocinaria. E isso tem um peso e um significado que não pode ser depreciado, mesmo lembrando todos os que votaram contra e os que se abstiveram depois de há quatro anos terem estado tão perto da concretização adequada do projecto legislativo.

Entretanto, com eleições quase à vista, desenterram-se trunfos que, mesmo carecendo de análise e de debate adequado, conseguiram apoio parlamentar. Falo da atribuição dos vistos gold a quem queira investir na cultura, com um montante mínimo exigido de 350 mil euros, para além das áreas da reabilitação urbana e da investigação científica.

E as perguntas, vindas de vários lados, multiplicam-se: quem estará disposto a investir quantias desta envergadura num projecto teatral, museológico, de artes visuais ou patrimonial quando se sabe que estas são áreas de muito magro e problemático retorno financeiro? O secretário Jorge Barreto Xavier, como é sua função, está optimista e faz reverter os méritos a favor do Governo que integra e onde conseguiu ser o quase ministro que deixou de haver antes de ele lá chegar. E não falta quem assegure que o essencial é produzir, com a gente do meio, o justo diagnóstico que permita determinar o que verdadeiramente falta quando quase tudo esteve e está em falta. E o próprio António Mega Ferreira, hoje a dirigir a estrutura da Orquestra Metropolitana de Lisboa, recorda, com inevitável ironia, depois de ter assegurado que não é ministeriável nesta área, que “estamos em fim de mandato” e que “não sei o que poderá vir a acontecer”. Não sabe ele, nem sabemos nós, embora saibamos e não saibamos muitas outras coisas sobre “VIP's” e listas “VIP” que têm animado o nosso nervoso quotidiano político-mediático, onde tudo súbita e aceleradamente se torna espectáculo.

Mas o mais interessante e digno de nota e séria reflexão é que as forças políticas em geral ainda não colocaram a devolução à cultura do indispensável estatuto ministerial como prioridade da próxima estratégia governativa, como se este fosse um tema sem verdadeira relevância estratégica. E é imperioso lembrar que a cultura é, em Portugal e no resto da Europa, uma das actividades que mais emprego criam, que mais gente atraem e fidelizam e que maior influência têm, reconhecidamente, nas escolhas dos turistas, para além de dar visibilidade e prestígio ao país além-fronteiras.

Observando a lista dos responsáveis sectoriais no gabinete de estudos do PS, não se sabe quem vai ser responsável por este sector. E é justamente aí que os gold de fim de estação deverão ser analisados e postos em causa, para além das episódicas euforias parlamentares. “VIP” terá de ser governo, mas falta saber como e com quem. Mas há tempo.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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