"Há retornados que acham que sou uma traidora"

O romance de Dulce Maria Cardoso sobre a chegada dos retornados a Portugal não pára de ser reeditado. Era de esperar que esse sucesso editorial se devesse sobretudo a quem passou pela experiência descrita em O Retorno. Mas muitos retornados nem conhecem o livro.

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“Era muito morena, estava sempre ao sol. Quando cá cheguei fiquei branca" Enric Vives-Rubio

Dulce Maria Cardoso não consegue estar muito tempo ao sol. A pele é tão clara que ela parece alguém que precisa de ser salva. Perdeu “a cor toda” há 40 anos quando veio de Angola, rapidamente e em força. “Era muito morena, estava sempre ao sol. Quando cá cheguei fiquei branca. Sou muito branca, que era uma coisa que desconhecia acerca de mim.”

Aconteceu-lhe outra coisa quando chegou a Portugal. “Toda a gente dizia que eu ia ser enorme. Cheguei cá e nunca mais cresci”, ri-se. “Fiquei convencida durante muito tempo que foi o frio da metrópole que me impediu a ascensão. Fez aquela coisa que acontece aos bolos quando saem do forno.”

Sem o frio da metrópole, e sem toda essa experiência de ser levada pelos acontecimentos como uma enxurrada, talvez não se tivesse tornado escritora. “Tinha 11 anos. Fui a minha primeira personagem. Achei sempre: vou contar isto, vou contar isto.”

Publicado há quatro anos, O Retorno tornou-se “um pequeno monstro”, diz a autora, como se o êxito editorial ainda hoje a surpreendesse. O romance vai na nona edição. “É um livro que estamos sempre a vender e a reimprimir”, diz Bárbara Bulhosa, editora da Tinta-da-China, que publicou O Retorno. “É um daqueles livros que vai ficar. Tornou-se um bocado obrigatório.”

Não era previsível. A literatura sobre o tema – o retorno dos colonos a Portugal durante um processo de descolonização mais improvisado do que preparado – era praticamente inexistente. “Porque é que há tão pouco material escrito sobre estes retornados? Foram meio milhão de pessoas, com os seus descendentes todos, uma coisa que foi certamente traumática para a maior parte”, diz Dulce Maria Cardoso. “Meio milhão é muita gente para um país desta dimensão. Toda a gente lidou com retornados. Quanto mais não seja, ouviu falar. Achei que era um tema que não tinha interesse nenhum, já que ninguém tratava dele.”

O livro foi editado pela Tinta-da-China, que até então nunca tinha publicado ficção. “Era mais do que normal a coisa não correr bem.”

Há um antes e um depois de O Retorno no percurso literário de Dulce Maria Cardoso. Apesar do reconhecimento crítico, apesar dos prémios, apesar da sua inclusão em antologias estrangeiras, antes do quarto romance não era uma escritora muito lida. Antes, não era abordada no supermercado. “Desculpe estar a olhar tanto para si, mas gostei muito do seu livro.” Isto passou-se num Pingo Doce.

“Os retornados tinham sido muito mal recebidos [em Portugal]. Ser retornado era um estigma. Nunca imaginei que o estigma, de repente, pudesse passar a ser uma mais-valia”, diz Dulce Maria Cardoso.

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O passa-palavra foi determinante para o êxito de O Retorno. “As pessoas gostaram muito e depois ofereceram o livro. No outro dia, conheci um leitor que me disse: ‘Gostei muito, mas já recebi três. Chega.’”

Seria de esperar que a popularidade se devesse sobretudo a quem passou pela experiência descrita no livro – uma ficção inspirada na história pessoal de Dulce Maria Cardoso, mas que de maneira nenhuma se reduz a ela – e se reconheceu (“a questão da solidão: alguém viveu o mesmo que eu”).

A realidade é mais complexa. “Acho que o livro fez muita diferença para as pessoas que não sabiam o que se tinha passado. Pessoas que têm agora 30 anos, que não eram vivas no 25 de Abril, ficaram muito agradecidas. Tenho recebido muitas mensagens”, diz a autora.

Existe um outro grupo de leitores, “não muito grande”, como a mulher, uma retornada, que comprou três exemplares do livro para oferecer aos filhos. “Ela disse-me: ‘Nunca consegui explicar aos meus filhos o que eu passei e este livro diz exactamente como foi, portanto quero oferecer um a cada um.’ Como uma espécie de herança. Isso comoveu-me”, conta Dulce. O Retorno permitiu a algumas pessoas, filhos de retornados, compreenderem a raiva dos pais. Reacções que chegaram à autora: “Percebi finalmente por que é que o meu pai era tão amargo.” Ou: “Agora percebo porque é que a minha mãe detestava tanto a metrópole.”

“Fico contente por o livro ter apaziguado pessoas”, diz Dulce Maria Cardoso.

Nem sempre. “Há retornados que acham que sou uma traidora. Porque eu ponho os dois lados. E eles não têm dois lados. No livro somos todos bons e maus à vez. Para eles, não: havia os maus e os bons.”

Muitos retornados nem sequer leram ou conhecem o livro. Bárbara Bulhosa, editora de O Retorno, conta que uma amiga lhe disse que a mãe “não pode ler este livro” porque seria demasiado doloroso.

“Essas pessoas perderam uma coisa, um modo de viver, querem é tentar resgatar esse modo de viver”, diz Dulce Maria Cardoso. “Eu não quero resgatar esse modo de vida, felizmente ou infelizmente já sei que é impossível o resgate. O colonialismo não devia ter existido, nada daquilo devia ter acontecido. Mas essas pessoas continuam a querer aquilo. Acham que era possível ter-se resolvido de outra maneira. Não são más pessoas, são só pessoas postas em circunstâncias… É o que eu digo: se eu tivesse sido alemã na década de 30 e 40 possivelmente era nazi. A maioria era, porque é que eu não seria?”

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Não se pode ter nostalgia de África sem a nostalgia do império ou do colonialismo?

“Não. Aquela era a realidade onde foram mais felizes e mais prósperos. Investiram muito. Também foram vítimas. Quando Salazar disse ‘para Angola, rapidamente e em força', estas pessoas foram e trabalharam muito, construíram muito. Sentiram-se muito lesadas depois. Compreendo a raiva, compreendo o desespero, compreendo isso tudo. Por isso é que foi tão difícil escrever O Retorno. Ainda por cima sendo eu filha dessas pessoas, que perderam tudo de um momento para o outro.”

Dulce não fez pesquisa para o livro, não procurou outros retornados, nem sequer falou com a sua própria família. “Sou a mais nova da família, mas sou eu quem se lembra de mais coisas. A minha irmã, durante 20 anos ou mais, negou que era retornada. Por isso é normal que não se lembre, que tenha apagado tudo. A minha mãe lembra-se de ter perdido tudo mas também não se lembra de mais nada.” O pai já não era vivo quando escreveu O Retorno. “Eu era muito miúda, tinha uma idade que me permitia decorar sem julgar. Portanto, pude congelar tudo.”

Foi só depois de publicar O Retorno que soube da existência de grupos de retornados, comunidades revivalistas forjadas no Facebook, onde partilham fotografias e memórias pessoais. Dulce chegou a frequentar encontros de confraternização de alguns grupos, eventos com a duração de um dia inteiro, incluindo almoço, jantar, baile, desfile de trajes com panos africanos. Em 200 pessoas, quatro ou cinco saberão da existência de O Retorno. Durante um período, Dulce Maria Cardoso pensou fazer um livro baseado nas memórias dessas pessoas. “Depois desisti desse projecto porque comecei a ficar muito farta do tema. Por outro lado, não tinha testemunhos que pudessem fazer uma grande diferença. Dizem quase todos a mesma coisa: Que a vida era maravilhosa lá. Falam ainda como se estivessem lá. Sem perceber que estava tudo errado desde o início. Conversas absolutamente colonialistas, racistas. ‘Ficaram lá com aquilo e estragaram tudo, nunca souberam fazer nada’. Quando me perguntam se havia racismo em Luanda, eu digo: ‘Mas se há racismo em 2015 em Lisboa, como é que em 1975 não havia?’”

Passados 40 anos, é comum falar-se do retorno como um processo positivo, elogiando a capacidade do país para integrar meio milhão de pessoas de um dia para o outro. “Depende do que estamos a comparar”, sublinha a escritora. “Não houve mortos nem sangue, ou poucos houve, porque os que se suicidaram e os que enlouqueceram não fazem parte dos números. Desse ponto de vista, foi pacífico. Agora, sermos bem recebidos no sentido de haver igualdade de oportunidades, de haver curiosidade em relação ao outro? Isso não houve, de todo”, diz.

Os retornados foram recebidos com desconfiança e hostilidade. “Houve retornados que se integraram muito silenciosamente e sem problema algum. O estigma não era tanto ser retornado. O estigma era a pobreza. Os que vieram sem nada. Havia em Cascais uma família de retornados que tinha uma grande vivenda no bairro do Rosário, que faziam festas ao fim-de-semana com merengues. E eram exóticos. Eram maravilhosos. Porquê? Porque tinham bastante dinheiro. Faziam festas enormes. Eram altos, morenos. As raparigas andavam sempre de fato de banho a passear-se ao pé da piscina. Fumavam. Toda a gente queria ser amiga daqueles retornados. Os retornados de que eu falo e o estigma associado são os retornados dos hotéis, das filas da Caritas, das filas da Cruz Vermelha. Os retornados foram meio milhão ou mais, mas foram realidades diversas. Houve funcionários públicos que até ficaram numa situação melhor cá. A única coisa era: não tinham o clima, não tinham as lagostas, não tinham o pôr-do-sol de lá, aquelas coisas que eles inventam e que também não são verdade. Havia imensas enxurradas, havia imensa lama.”

Quando foi para a escola em Portugal, Dulce Maria Cardoso foi colocada numa fila à parte, juntamente com outras crianças que tinham vindo das ex-colónias, que supostamente tinham problemas de aprendizagem. “Durante um ano lectivo inteiro, houve uma professora de matemática que nunca chamou um de nós pelo nome. Passou o ano todo a dizer: ‘Um dos retornados que responda.’”

Lembra-se de ter sido convidada pela primeira vez para uma festa de aniversário três anos depois de chegar a Portugal. “Havia festas constantes. Eu nunca ia. E não era porque não quisesse. Não era porque não fosse afável. Eu era muito afável e muito sorridente. Era muito boa aluna. Era muito concorrida para os trabalhos de grupo, por exemplo. Mas continuava a não ir às festas. Isso diz muito sobre a integração.”

Se a integração foi um “sucesso”, isso “partiu da vontade dos retornados”, defende. “Acho que houve uma decisão do género: ‘Nós temos de viver cá e somos menos.’” Ao contrário das matrículas de automóveis portuguesas, com duas letras, as matrículas das ex-colónias continham três letras.

“Quando passávamos, os carros com as três letras, buzinávamos uns aos outros. ‘Estamos aqui, estamos aqui…’ Era um sinal de reconhecimento. Depois deixámos. E depois as conversas já não eram no sentido de ‘eles’ e ‘nós’. Até porque os retornados queriam montar negócios e sabiam que tinham de contar com os consumidores de cá.”

Não é um discurso de vitimização. “Se daqui a 20 ou daqui a 40 anos uma ucraniana escrever um livro sobre como foi difícil a integração em Portugal, eu sou uma da metrópole. Não conheço nenhuma ucraniana. As únicas que conheço são empregadas de amigas. Não tenho uma amiga que tenha uma amiga ucraniana. Mas eles existem, estão cá, têm negócios.”

Uma sociedade que se recusa a olhar criticamente para o passado – e que ainda não passou da infância dessa discussão – está condenada a perpetuar os erros. Ao fim de 40 anos, começa a deixar de haver atenuantes. “Qualquer dia temos tantos anos de democracia como de ditadura. E o mundo mudou muito.”

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