Don Bachardy aquém e além de Isherwood

São quase 50 anos de retratos de actores, realizadores e argumentistas. Hollywood é o álbum em que o artista plástico Don Bachardy ostenta uma voz própria. Mesmo se viveu sempre eclipsado pelo génio do companheiro, Christopher Isherwood..

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Quando, em 1964, Isherwood publica "Um Homem no Singular" – que Tom Ford adaptou ao cinema – é sobre a sua relação com Don Bachardy que está a escrever.

Quando, em 1964, Christopher Isherwood publica o romance Um Homem no Singular – história de um britânico em Los Angeles que recusa continuar viver perante a morte acidental do namorado – é inteiramente sobre a sua relação com Don Bachardy que está a escrever.

Quando, em 2009, o livro é adaptado ao cinema por Tom Ford, sob o título português Um Homem Singular, Bachardy parece ganhar algum protagonismo simbólico, já sem a tutela de Isherwood, que morrera em 1986. O seu papel tem vindo a ser reabilitado, mas jamais se conseguirá falar de Bachardy sem se começar por Isherwood. E o próprio assim recomenda.
“Tive a sorte de conhecer estas pessoas através da minha parceria com Christopher Isherwood, ele era a garantia da minha seriedade e do meu talento”, diz Bachardy, de 80 anos, logo no início de uma conversa telefónica com o Ípsilon, a partir da cidade costeira de Santa Mónica, em Los Angeles, onde nasceu e vive. O termo que utiliza é este mesmo: “parceria” (“association”). E as pessoas a que se refere são actores, realizadores e argumentistas de cinema cujos retratos foi fazendo nos últimos 48 anos – para agora os apresentar no álbum antológico Hollywood. “Convidava as pessoas quando as conhecia em circunstâncias sociais”, acrescenta. “Sugeria a possibilidade de lhes fazer o retrato e as pessoas assumiam que, sendo amigo de Christopher Isherwood, deveria ser talentoso.”

Fosse o livro representativo da obra de Bachardy e não teríamos cerca de 300 desenhos de figuras hollywoodescas, apenas cinco ou seis. Mas a editora assim quis e o artista concordou. “Um retratista tem de apresentar objectos reconhecíveis, de outro modo o público não consegue julgar a validade do trabalho”, justifica, fazendo notar, ainda assim, que é ínfima a percentagem de retratos seus de celebridades da sétima arte.
Com prefácio do escritor Armistead Maupin, introdução do próprio artista e nota inicial de Tom Ford, o livro encontra-se dividido em três partes principais, correspondentes à profissão dos retratados: realizadores, actores e argumentistas e outros. Personalidades directa ou indirectamente ligadas à indústria do cinema americano: Robert Altman, Lindsay Anderson, Kenneth Anger, Stephen Frears, Todd Haynes, Fritz Lang, Gus Van Sant, Truffaut, Polanski, Bertolucci, Roland Petit, Gore Vidal, Fred Astaire, Warren Beatty, Katharine Hepburn, Glenn Ford, Jack Nicholson, Joan Collins, Joe Dallesandro, Marlene Dietrich, Mia Farrow, Julianne Moore, entre tantos outros. Os retratos mais antigos são de 1961; os mais recentes, de 2009. Inéditos, cerca de 150.

Num sotaque que se diria mais próximo do londrino que do californiano, explica que a proximidade a estas figuras foi quase sempre apenas profissional. “Muitos posaram por generosidade para com um jovem artista”, reconhece. “Alguns, conhecia-os bem, outros eram amigos e muito poucos se tornaram íntimos. É o caso de Leslie Caron, Deborah Kerr ou Glenn Ford. Gore Vidal foi também um bom amigo e posou para mim dezenas de vezes entre 1959, quando era um homem muito bonito, e os anos 90.”
Salta à vista a existência de muitos retratos a preto e branco até 1986, ano da morte de Isherwood, e quase todos a cores depois desta data. A amostra, esclarece o autor, está enviesada. “O livro talvez permita tirar essa conclusão, mas a verdade é que comecei a fazer trabalhos com cor em meados dos anos 60 e nos anos 70 já trabalhava quase exclusivamente assim. Quis ganhar absoluta confiança nas minhas capacidades antes de abandonar o preto e branco.”

Curiosamente, os retratos a preto e branco parecem os mais realistas, enquanto os coloridos aceitam sugestões expressionistas. Será assim? Don Bachardy não concorda inteiramente. “O expressionismo está mais implicado em trabalhos de pintura do que em desenhos, mas as pessoas acabam por se referir aos meus trabalhos como expressionistas porque eles são muito coloridos, nunca me limito aos pastéis e aos cinzentos. Uso muita cor porque é assim que vejo as pessoas quando elas posam para mim.”

São agora raros os momentos em que se senta a pintar com um modelo à frente. No máximo das suas capacidades fazia sessões de três a cinco horas até obter uma série de três retratos da mesma pessoa. “Sem um único intervalo”, sublinha.
É por isso que tem uma opinião pouco favorável dos artistas que pintam com base em fotografias e prescindem do modelo vivo. “A fotografia é trabalho do fotógrafo, ele é que tem a experiência artística. Os pintores que só usam fotografias são escravos da fotografia, não chegam a sentir qualquer emoção real, muito menos a dificuldade e imprevisibilidade de ter um modelo à frente.” A técnica é esta, pois: “A pessoa fica a posar para mim, parada e concentrada; começo imediatamente a trabalhar com cores, não dou cor a um desenho que tenha feito previamente, penso e trabalho directamente com cor.”

Don Bachardy estudou no antigo Chouinard Art Institute de Los Angeles e na Slade School of Art de Londres. Fez uma primeira exposição individual em 1961 na Redfern Gallery, em Londres, e até aos anos 2000 não mais voltou a mostrar-se em nome próprio. Trabalhos seus fazem parte do acervo de colecções como as do Metropolitan Museum de Nova Iorque (retratos de William S. Burroughs, Tennesse Williams e Isherwood, por exemplo) ou da National Portrait Gallery de Londres (W.H. Auden e E. M. Forster, entre outros).
“Foi Isherwood quem sugeriu que eu me tornasse artista”, lembra. “Quando o conheci, mostrei-lhes vários retratos que tinha feito em adolescente, com actores do cinema, retratos a partir de fotografias. Ele reconheceu-os a todos e entusiasmou-me, foi assim que comecei a desenhar com modelos vivos.”
Tinha 18 anos quando conheceu Isherwood em Los Angeles. Estávamos em 1953. Era um adolescente encantado pela beleza paternal do já então conhecido romancista britânico. Isherwood instalara-se nos EUA poucos meses antes do início da II Guerra, na companhia de W. H. Auden e depois de uma passagem por Portugal. Já tinha escrito a obra seminal, Adeus a Berlim, de 1938, mais tarde apensada a Mister Norris Muda de Comboio, de 1935, sob o título comum The Berlim Stories. Salvo a curta separação que inspirou Um Homem no Singular, no início dos anos 60, o retratista e o escritor mantiveram-se juntos por 33 anos.

A história do casal é narrada em Chris & Don: A Love Story, documentário de 2007 realizado por Guido Santi e Tina Mascara. Mas nem por sombras foi alguma vez secreta, como se poderia erradamente julgar, tratando-se de um casal homossexual numa época pré-gay (anterior à Revolta de Stonewall, em Nova Iorque, em 1969, início simbólico do movimento de defesa de direitos das minorias sexuais).
“Como éramos artistas e não dependíamos de um patrão tínhamos a liberdade que os artistas em geral têm numa sociedade, não éramos julgados pelos padrões vigentes”, recorda Bachardy. “Ainda assim, era digno de notícia se aparecíamos juntos em festas, sobretudo se os convidados principais eram actores de primeira grandeza. Éramos o único casal masculino nas festas em casa de David Selznick. Uma vez, Joseph Cotten, que como se sabe era um actor famoso dos anos 40 [um dos protagonistas de O Mundo a Seus Pés], disse alto e bom som que ‘deplorava meios-homens’. Foi o único comentário deste género que alguma vez ouvi. E foi-me dito a mim, não ao Chris, que era muito respeitado. Teríamos sido expostos a muitas outras demonstrações de homofobia se não fôssemos artistas”, afirma.

Quando, por fim, perguntamos a Don Bachardy o que sente ao olhar esta galeria de figuras míticas do cinema, a resposta revela um enorme sentido de gratidão e um deslumbramento perante o acaso das coisas: “Tive a sorte de ter conhecido Isherwood, quando tinha apenas 18 anos e de ter percebido que ele era uma pessoa extraordinária; permiti-me conhecê-lo e ganhar intimidade com ele, o que era pouco comum no início dos anos 50”, reflecte. “Sinto enorme orgulho na minha carreira, sinto-me orgulhoso por ter tido tanta gente distinta a posar para mim e por ter tido uma relação de 33 anos com Isherwood. Não consigo perceber de onde me veio esta sorte, parece-me muito pouco habitual.”

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