Domingo em Paris

1. Aterrei em Paris à meia-noite de sábado e a primeira coisa que fiz no domingo foi visitar um amigo recente. Ele morreu mais de cem anos antes de eu nascer, mas ainda assim passámos parte deste Verão juntos, na minha toca alentejana, porque a narradora do livro que eu estava a escrever fez um pacto com ele. Portanto, quando acabei o livro, meti-me numa low cost e vim cumprir um desejo dela.

2. Não vinha a Paris há uns sete anos. É bom termos um motivo forte para regressar a lugares que mudaram a nossa vida, algo que faça avançar a memória para outro lugar, agora. Apanhei assim o metro de Boucicaut para Passy e quando saí lá estavam aquelas varandas com grandes janelões velados por cortinas, luz acesa de manhã por ser já Outubro e chover, ruas brilhantes, folhas de Outono, vermelhas, brilhantes. Tudo era completamente Paris e eu nunca tinha caminhado neste bairro, Passy, ainda uma aldeia no tempo em que o meu amigo para aqui veio morar. Hoje, a ponta da Torre Eiffel domina o horizonte, mesmo por trás das nossas costas, se sairmos do metro e metermos pela Rua Raynouard, que foi o que eu fiz. Fui por entre as robustas varandas, à procura do número 47, quando de repente, do lado esquerdo, desapareceram as fachadas dos prédios: uma espécie de miradouro, com uma grade e um portão de madeira ao canto, aberto.

3. O portão dava para uma escada de ferro que descia para o velho jardim de uma velha casa, como um enclave de 1840 em 2014, casa e jardim suspensos na encosta, vista de arranha-céus, uma bandeira da Turquia (uma embaixada?). Claro, em 1840 tudo seria menos vertical, menos apinhado, mas para quem escrevia de costas voltadas para a janela também não teria feito tanta diferença, e o sossego seria, pelo menos, este. Então foi nesta casa que Balzac escreveu muitos dos volumes da Comédia Humana, noite dentro, dia fora, em jornadas de 16, 18 horas, incluindo a versão final do romance que levou a minha narradora a fazer um pacto com ele.

4. Carregado de dívidas, e com um lastro de muitas moradas parisienses, ele alugou apenas uma parte da casa. O que se pode ver hoje são quatro pequenas divisões com lareira e vitrais nas janelas, bustos e retratos, livros e manuscritos. Na última, a do escritório, continua a mesa de madeira com a poltrona muito gasta onde Balzac escrevia, de frente para a porta, se a disposição não foi alterada. Em cima da mesa estão duas provas tipográficas com anotações minuciosas tão profusas que libertam de culpa quem, como eu, continua a escrever mesmo depois de o texto já estar composto na página, pronto para impressão. Aliás, por toda a casa, há dezenas de folhas expostas com milhares de correcções, setas, riscos, e em alguns casos o texto corrigido à mão é maior do que o já composto. Um dos painéis expostos cita uma carta em que Balzac fala das inúmeras versões que faz de cada página, sendo que ele escreveu mais de cem romances. Há uma referência à correcção da décima quinta prova tipográfica, ou seja, as páginas de um livro que já tinham viajado 15 vezes entre a editora e o autor, com emendas a cada vez. O sonho de um autor, vestígio de um tempo há muito perdido. Não é por acaso que, no meio de todas as provas tipográficas, se destaca uma cafeteira de porcelana. O café era a sua droga, ele basicamente não dormia para escrever. E, como disse numa carta a Madame Hanska, a mulher com quem finalmente se casou, já depois dos 50 anos, assim foi engordando como um rei-sol, sempre sentado na sua poltrona de tecido, progressivamente esgarçado. Escrever romances é uma actividade muito pouco contemporânea, no tempo que requer reescrever, e na barriga pousada durante esse tempo.

5. Cá fora, no jardim, bagas e esfinges de pedra, tudo encharcado, porque cada vez chovia mais. Voltei ao metro de Passy e saí no Père Lachaise, uma estreia. Nem na primeira vez que vim a Paris, adolescente, me passou pela cabeça ver a campa do Jim Morrison, nem nunca depois pensei ver a campa de alguém. Mas isto era uma promessa da minha personagem, como se diz no candomblé eu incorporara nela, e a verdade é que ela estava certíssima, porque o Père Lachaise é um lugar lindo, talvez especialmente no Outono, talvez especialmente com chuva. Dia perfeito para um cemitério, só aqui e ali o vislumbre de um tufo de turistas, com as suas capas de plástico coloridas, e de resto, deserto: alamedas, veredas, largos, atalhos; gravilha molhada rangendo nos pés, poças, mantos de folhas caídas, aquele assombro das estátuas de pedra.

6. Eu vira no mapa à entrada que Balzac era o número 97 do sector 48, mas não basta, há que ir de mapa na mão, e portanto perdi-me entre os mortos ilustres da França, nem todos franceses, claro. O par que a certa altura se cruzou comigo, por exemplo, andava à procura de Oscar Wilde. Diálogos que só acontecem no Père Lachaise:

— Por acaso sabe onde está o Oscar Wilde?

— Não, desculpe, ando à procura do Balzac.

Por acaso, podia ir visitar o Oscar Wilde, porque a minha personagem também o puxa para a sua história, truncando-o, aliás, numa célebre citação.

Enquanto isto, o cavalheiro do casal tinha accionado o 3G do telefone e verificava que Isadora Duncan e Marcel Proust estariam no nosso caminho. Ora, ora. Por mais um daqueles acasos, Isadora Duncan também passava velozmente pelo meu livro, e Proust é Proust. De modo que lá fomos os três na tempestade, eu e um par de americanos da Califórnia. Ele acabara de escrever um romance chamado Old For California. Óptimo título.

7.Mas Balzac apareceu antes de todos. Lá estava, em busto, os cabelos longos para trás. Eu vinha de mãos vazias, e não é que a seus pés havia um cravo vermelho, verdadeiro, fresco? Acho que a minha personagem chegou antes de mim.     

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