“Documentário e ficção, é tudo a mesma coisa”

O italiano Pietro Marcello fala de Bella e Perduta como uma carta de amor a uma Itália rural, e a uma história, que não se podem nem se devem esquecer. Quinta-feira, em abertura do Doclisboa.

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Um objecto de um cuidado formal estonteante, assinado por um cineasta auto-didacta que diz ter aprendido a filmar com os grandes realizadores soviéticos e que adora o Pasolini
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Pietro Marcello, 39 anos, criou o acontecimento aquando da edição 2015 do festival de Locarno. A sua segunda longa-metragem, Bella e Perduta, apresentada a concurso, foi recebida com longos aplausos quer na sessão de imprensa quer na estreia pública – aplausos que o realizador não ouviu: “não consigo, é-me difícil estar na sala...”. Muitos observadores consideraram-no o melhor filme presente na competição oficial, mas o júri deixou-o de fora do palmarés – decisão que surpreendeu inclusive o próprio director do certame, Carlo Chatrian (diria mais tarde, na sua página do Facebook, que o júri é soberano mas que tinha pena por ele “não ter encontrado lugar no seu palmarés para este filme belíssimo."

Passa quinta-feira em abertura oficial do Doclisboa 2015, onde integra a competição oficial (volta a passar sábado, às 22h15, no cinema Ideal). Bella e Perduta é profundamente italiano – até pela sua âncora na realidade transalpina contemporânea e especificamente na região da Campania – mas profundamente moderno na sua diluição das fronteiras entre a ficção e o documentário.

A verdade é que essa diluição de fronteiras foi “forçada” pela realidade. O projecto inicial consistia num filme em viagem sobre a Itália rural contemporânea, mas essa ideia caiu por terra com a morte inesperada em 2013 de Tommaso Cestrone, o “anjo de Carditello”, um voluntário que durante dois anos trabalhou sozinho e a expensas próprias para impedir que um antigo palácio real na região de Nápoles caisse em ruínas. Marcello começara a sua rodagem por Carditello, mas a morte de Tommaso mudou radicalmente o projecto, que terminou como uma fábula sobre a relação entre o homem e a natureza, acompanhando uma cria de búfalo que Cestrone havia acolhido e o Polichinelo que desce da burocracia do além para a guiar ao seu destino.

O resultado é um objecto de uma poesia simples e profundamente tocante, de um cuidado formal estonteante, assinado por um cineasta auto-didacta que diz ter aprendido a filmar com os grandes realizadores soviéticos e que adora o Pasolini dos primórdios e o neo-realismo italiano, e que dá aqui um enorme salto em frente depois de La Bocca del Lupo (2009, que no Indielisboa). É, sem meias palavras, um dos filmes do ano. E Pietro Marcello explicou um pouco da sua abordagem ao cinema numa curta conversa em Locarno.

Bella e Perduta tem uma dimensão de fábula construída a partir da realidade. Foi sempre essa a sua intenção?

Não, não. Quando o filme começou a ideia era falar da Itália, e isso acabou com a morte do Tommaso. Pareceu-nos importante contar a sua história, até porque ainda há algum mistério a rodear as circunstâncias da sua morte... Ele era um herói local, com algo de épico, e senti que se tornara nossa responsabilidade contar a sua história. Para mim, pareceu-me importante continuar o filme com Sarchiapone, o búfalo, porque com a morte de Tommaso o seu “espírito” passa para ele.

Numa espécie de passagem de testemunho entre as várias personagens?

Exacto. Podemos sempre imaginar um final, ou mesmo um outro filme, mas creio que a realidade prevalece sempre. A personagem do Polichinelo escolhe a certa altura tornar-se mortal, escolhe o livre arbítrio. Ao fazê-lo, torna-se num novo pastor e abandona o mundo da fábula e do sonho. De certo modo, ele é a esperança do homem novo que virá em seguida, o pastor que toma conta do rebanho. Outros Tommasos virão, Polichinelo é um deles.

A presença da história, e de tentar garantir que ela não caia no esquecimento, é um dos temas fortes do filme.

Para mim, a história não se esquece. A história é tudo. É parte da minha vida, da minha origem, tudo o que trago dentro de mim. E o cinema é também história, porque uma vez rodado torna-se também ele em algo de histórico. Cresci perto de Carditello e do palácio, e cresci com a arte, entre as ruínas romanas e a beleza do Cinquecento e do Ottocento. Quis ser pintor, mas não era assim tão bom e fui dar ao cinema... E o cinema é a forma. Somos nós que lhe trazemos o conteúdo.

É interessante que diga isso, porque o seu filme é extremamente contemporâneo a esse nível. Tem muito a ver com o actual trabalho do “cinema do real”, entre ficção e documentário...

Não tenho muita certeza quanto a essa etiqueta. Para mim documentário e ficção é tudo a mesma coisa, as ferramentas são as mesmas... Visto que nunca tive muito dinheiro, preferi sempre fazer os meus filmes com pouco dinheiro mas garantindo o controlo total. Aprendi a trabalhar com o imprevisto, com a improvisação. E Bella e Perduta nasceu todo da improvisação, foi sendo escrito no dia a dia. De certo modo, foi surgindo sozinho - e isso deve-se também ao argumentista, Maurizio Braucci, que antes de ser guionista é escritor. Depois existe uma grande relação entre a montagem e a escrita – a montagem é o momento final da escrita do filme, todos os argumentistas deveriam trabalhar na montagem porque a escrita fica incompleta sem a transposição fílmica. A minha produtora, Sara Fgaier, é também montadora de todos os meus filmes, e portanto existe já um grande entrosamento com o que estamos a fazer. Mas espero que sim, que seja um filme de hoje.

É-lhe difícil falar do seu cinema?

É. Muito difícil. O problema é deixar o filme sozinho, olhar para ele e dizer “pronto, já está”. Gostava sempre de continuar a trabalhar nos filmes, e é-me muito difícil falar sobre ele. É o filme que deve dizer tudo, é assim que deve ser. É o filme que fica; o realizador desaparece.

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