Devolver o real

No Museu de Serralves, Salomé Lamas apresenta filmes em contextos de instalação, colocando o espectador nas fronteiras da ficção, do documental e da experiência das imagens em movimento

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Documentário? Cinema? Cinema de experimentam? Obras cinemáticas? Objectos fílmicos?

Não é uma surpresa constatar a presença de obras de Salomé Lamas (Lisboa, 1987) no Museu de Serralves. O trabalho desta realizadora presta-se à indefinição ontológica que hoje caracteriza um domínio da produção de imagens em movimento. Documentário? Cinema? Cinema de experimentam? Obras cinemáticas? Objectos fílmicos?

As perguntas sucedem-se e permitem que as obras se desloquem da galeria para a sala de cinema, do ecrã do cinema para a blackbox do museu, do museu para a sala (anónima) do festival. Neste processo, as obras cultivam a flexibilidade formal, a descrença em “códigos” rígidos, interrogando (obsessivamente?) o real, a ficção, a verdade e as imagens. Exigem ou solicitam um espectador activo, disponível, com competência para ver mas, também, predisposto a abandonar ou, pelo menos, a conter explicações, narrativas ou histórias comuns. Preparado para desconfiar profundamente do real.

Paraficção

 de Salomé Lamas, que inaugura a Sala de Projectos de Serralves, com o comissariado de João Ribas, inclui obras realizadas entre 2012 e 2015, sob a forma de vídeo-instalações e filmes. Em Março, o auditório recebeu uma projecção de filmes da realizadora e, desde Fevereiro, a sala de multiusos tem acolhido, a um ritmo mensal, uma instalação. A primeira deu a ver o premiado 

Terra de Ninguém

 (2012), estreado no Doclisboa 2012. Seguiu-se 

Theatrum Orbis Terrarum

 e na quarta-feira passada estreou 

Mount Ananea (5853)

, trabalho inédito. É este o programa que constitui a exposição, cujo formato parece evocar a exibição convencional de cinema. O espectador viu um filme por mês, sabendo que, a partir de determinada data, esse mesmo filme “sairia de circulação”. Ainda assim, saliente-se, o que ele encontra são vídeo-instalações, com excepção de 

Terra de Ninguém

. As suas especificidades técnicas, as ideias que guiaram estas obras, não encontram no auditório as condições adequadas.

Terra de Ninguém

 beneficia (até de certo ponto) das condições da instalação e não apenas por causa do minimalismo ou do ritmo que a caracteriza. As histórias terríveis que José Paulo Sobral de Figueiredo narra, a violência a que entregou a sua vida, as frases chocantes que profere, imobilizam com facilidade o espectador mais incauto, aquele que entra para espreitar. O filme continua a ser uma obra forte, incómoda, desconcertante sobre a memória colectiva de Portugal e da Europa. Mas a História não é certamente a sua personagem, e sim aquele homem, com os seus desejos obscuros, traumas e desilusões; como todos os humanos, um ser multidimensional.

Salomé Lamas não julga e Paulo Figueiredo não se oferece a qualquer julgamento. E a dada altura o espectador poderá interrogar-se: e se ele é afinal uma personagem de ficção como tantas que recordam, no cinema, vidas passadas? Que garantias existem de que conta a verdade? Só a dimensão “documental” do filme, o elo com o real, assegura a segurança da plausibilidade ou até a promessa de uma verdade. Falecido antes da estreia de Terra de Ninguém, o ex-mercenário português ficará em termos historiográficos num limbo de que só será resgatado pelo encontro de Salomé Lamas com seus espectadores (essa é a outra relação que atravessa o filme).

Theatrum Orbis Terrarum

, de 2013, apresentado numa exposição homónima no Museu Chiado, é uma instalação de vídeo multi-canal em três ecrãs. A experiência que propõe é sobretudo sensorial, convidando o espectador a fazer associações, e reproduz estados que o suporte técnico tende a estimular: a observação distraída, a recepção simultânea de imagens e sons diferentes, o apelo a uma imersão nem sempre voluntária.

Mount Ananea (5853)

 (2015), pelo contrário, devolve o espectador ao real. Não é algo que aconteça sem esforço, sem um compromisso com o acto de ver. Produzido com materiais recolhidos durante a viagem de pesquisa para o filme 

El Dorado

 (2015), revela, por meio de um projector de 16mm, um movimento de luzes inquietas e bruxuleantes. Essa pode ser a primeira impressão, porque, em pouco tempo, se reconhecerão lugares e pessoas. As luzes são as lanternas que mulheres e homens empunham enquanto sobem e descem a garganta das minas de La Compureta, Peru. Num plano fixo e aberta pela profundidade de campo, é essa a tragédia, movida por ilusões, esperanças e misérias, que desfila diante do espectador. E ele hesitará entre o sobressalto provocado pela (imagem da) criança que desce às costas da mãe e o efeito das luzes na escuridão.

 

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