Destruir-se, diz ela

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Uma das mais importantes coreógrafas da cena contemporânea, Tânia Carvalho, estreia uma peça para 20 intérpretes, verdadeiro teste às linhas principais do seu trabalho: rigor, destruição, forma. Um discurso marginal que hoje e amanhã está na Culturgest, em Lisboa, e, na semana que vem em Paris.

Há um momento, que corre o risco de se perder por entre a massa de bailarinos que forma o elenco de "Icosahedron": uma linha preta atravessa os 20 corpos que se digladiam por uma só identidade. O que então vemos, escondido pela sombria luz e pela rigidez dos corpos, é apenas uma das chaves para a mais recente coreografia de Tânia Carvalho (n. 1976), feita de aglomerados de sentidos, de gestos, de frases que parecem de um outro tempo, imaterial apesar da aridez do que fazem.

A estreia hoje, na Culturgest, é só a primeira data de uma digressão que a levará, dias depois, a abrir os Rencontres de Seine-Saint-Denis, na região parisiense, o mais importante festival de dança contemporânea do início da temporada e para o qual todos os olhares se dirigem quando se fala de experimentação em dança.

Tânia Carvalho chega agora, ano de todas as crises, com uma peça para 20 intérpretes, quando as massas parecem ter perdido o lugar na cena contemporânea europeia. E, no entanto, ela, que sempre foi uma coreógrafa do gesto implicado, resolveu responder a essa dificuldade com uma peça onde se desmultiplica noutros corpos, mas não noutros olhares.

São 20 como podiam ser só um, materializando a complexa construção dessa figura geométrica, o icosaedro, de 20 faces iguais. "São todas projecções minhas", diz-nos no fim de um ensaio em Montemor-o-Novo, onde a companhia esteve em residência. "São projecções com funções diferentes", acrescenta. E a cada corpo uma função, a cada função um conjunto, em cada conjunto "a sua limitação".

Sobrevivência

O percurso de Tânia Carvalho é feito disso, de permanentes projecções e conflitos. "Tenho uma relação de amor-ódio com a dança", diz. Quando nos confessa que a acha pirosa, incompleta, imperfeita, nunca sabemos se está a ironizar ou se está a falar a sério. Nunca sabemos porque se percebe no movimento dado a fazer a cada bailarino uma limitação que deriva "da impossibilidade de aquilo ser feito". São assim as suas peças: no limite do dizível. E, no entanto, delas retiramos sempre a exigência de um movimento seco, áspero, que pede que os intérpretes sejam mais mecânicos e funcionais do que fluidos e abrangentes. E, em resumo, é isso que são: objectos que pairam na cena coreográfica europeia sem par, que perturbam a lógica linear e integrada da dança actual, que reconstroem permanentemente um mesmo caminho, através da repetição, da insistência, da pesquisa profunda, da vontade de ficar a olhar para um mesmo movimento até ele se deformar por si, até ele passar a ser outra coisa, outro movimento, outra ideia.

Contudo, o modo como trabalha é muito rigoroso e formal: "Passo-lhes [aos bailarinos] o que quero que façam, até não lhes conseguir explicar. O que fazem, mesmo que tenha procurado integrar algumas das suas 'habilidades', serve uma mesma ideia". Essa ideia não é líquida e não é perceptível. Não tem de ser. Peças como "De mim não posso fugir, paciência!" (2008) ou "Orquéstica" (2006)", trabalhos de grupo, mostram o que já se tinha visto nos solos, como "Explodir em Silêncio Nunca Chega a ser Perturbador" (2005) ou "Uma lentidão que parece uma velocidade" (2007), obras de uma intensidade limite, como se cada movimento esgotasse a sua razão. "Eu sei sempre o quero que seja feito", diz-nos, antes de explodir numa gargalhada que disfarça a sua permanente dificuldade em explicar, exactamente, o que quer.

Ao longo dos anos, o que tem apresentado é um trabalho onde o corpo, sendo a matéria-prima da qual parte, serve uma função: destruir-se. É um corpo que não se resolve, que não se conforma, que "tenta ter uma forma". Em "Icosahedron", estes 20 corpos, escolhidos em audição e com evidentes formações distintas, servem um propósito: perceber se, juntos, podem criar uma massa. As imagens que criam, dialogando com uma surpreendente banda-sonora de Diogo Alvim, feita dos mesmos rasgos, cortes e amplificações metálicas do movimento, deformam-se ao mesmo tempo que se constroem. São bichos, são homens, são monstros, são geométricos, são tudo ao mesmo tempo, primeiro a solo, depois em grupo, primeiro no chão, depois erguendo-se, como se cada metamorfose fosse uma nova hipótese de sobrevivência.

Sobrevivência é a palavra mais forte para responder aos desafios lançados por Tânia Carvalho, que insiste numa ideia de derrota, de humilhação, de destruição. "Tenho essa ideia da dança", diz. Os rostos dos bailarinos, na primeira parte impassíveis, na segunda perturbadores, grotescos, "ridículos", são a sua forma de responder às exigências de formatação do corpo, do sentido, do gesto, da imagem. São, no limite, o seu próprio fantasma.

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