Descolonizar a cabeça

Um documentário sobre a guerra colonial, o nosso Vietname, abre esta sexta-feira o Festival Rotas & Rituais, que este ano festeja o 40.º aniversário da independência das ex-colónias portuguesas em África. Filmes, conferências e concertos para que finalmente façamos "as perguntas difíceis".

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Grande Hotel, de Lotte Stoops, acompanha a degradação de um dos mais luxuosos hotéis africanos, construído na Beira, em Moçambique, até ao estado em que está, uma favela em risco de colapso

Um homem está deitado numa cama, sozinho com os seus demónios, uma ventoinha de tecto gira contra o calor tropical. Já vimos isto antes, em Apocalypse Now, de Coppola, e logo a seguir um grupo de homens está a descer um rio num bote. A cada um o seu Vietname, a cada um o seu apocalipse: quatro ex-combatentes da Guerra Civil de Angola vão encontrar-se pela primeira vez quase 30 anos depois de terem lutado uns contra os outros e partilhar as suas histórias de violência. Um deles, o único branco, é também o co-realizador e narrador de My Heart of Darkness, documentário que abre esta sexta-feira o Festival Rotas & Rituais, às 21h30, no Cinema São Jorge, em Lisboa.

A Guerra Civil de Angola começou com a independência do país em 1975, opondo comunistas e anti-comunistas: de um lado, MPLA, o bloco soviético e Cuba; do outro, UNITA, África do Sul, Estados Unidos. A composição do grupo de homens que se encontram cara a cara em My Heart of Darkness reflecte esse antagonismo: Marius Van Niekerk, o co-autor do documentário que vai estar presente na sessão, lutou nas forças especiais sul-africanas; Patrick Johannes foi soldado do MPLA, recrutado à força aos 14 anos, quando ia a caminho da escola; Mario Mahonga, recrutado por forças estrangeiras (primeiro portuguesas, depois sul-africanas) para lutar contra o seu próprio povo; e Samuel Machado Amaro, veterano da UNITA, recrutado à força aos 15.

O filme tem um ponto de partida semelhante ao documentário do cambojano Rithy Panh, S21(2003), sobre o genocídio em massa perpetrado pelos Khmers Vermelhos: antigos inimigos regressam ao local das atrocidades e confrontam o passado. Mas enquanto S21 opunha ex-vítimas e um ex-carrasco, em My Heart of Darkness todos parecem ser simultaneamente vítimas e carrascos. “Quero que todos nós nos livremos das nossas memórias terríveis”, diz, a certa altura, Marius Van Niekerk. É esse o objectivo do filme, que se assemelha a uma terapia de grupo. A sua agenda é explícita: reconciliação e cura. Todos mataram, todos cometeram atrocidades. De cada vez que um dos homens narra uma experiência extrema, é suplantado por outra história ainda mais inominável.

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My Heart of Darkness é o documentário sobre as feridas da Guerra Civil de Angola que hoje abre o Rotas & Rituais

Quando o documentário estreou em 2010, o co-realizador sueco Staffan Julén explicou que o objectivo era “fazer um filme universal sobre veteranos de guerra e os efeitos da guerra sobre eles”. “Eu queria que, a partir de certa altura, o público deixasse de pensar em quem lutou de que lado. Porque o que importa é o que eles fizeram e como lidaram com isso.”

Apesar da narração não evitar os clichés, e apesar de o filme parecer um pouco refém da urgência do seu protagonista em expiar a culpa e corrigir o passado, a sua necessidade de consolo contrasta com o desassombro com que os outros homens falam sobre a sua experiência da guerra. Quando um deles descreve, de forma desafectada, a empalação de soldados inimigos, e Marius Van Niekerk pergunta como é que ele consegue viver com o que fez, o homem responde: “Eu não tenho culpa. Quem tem culpa é o governo e os comandantes. Eles é que nos mandaram matar."

As perguntas difíceis
Não é por acaso que My Heart of Darkness abre o Rotas & Rituais, que este ano é dedicado ao 40.º aniversário das independências das ex-colónias portuguesas em África. O filme é praticamente uma nota de intenções do festival: não fugir ao passado colonial, nem mitificá-lo, mas, munidos com a dádiva que é o tempo, confrontá-lo e fazer as perguntas difíceis. “Enquanto não encararmos as coisas como elas se passaram, dificilmente as podemos ultrapassar”, diz Paula Nunes, programadora do Rotas & Rituais, organizado pela EGEAC, empresa municipal de eventos culturais em Lisboa.

“Vivemos mal com as razões que nos levaram para África, vivemos mal com o que lá se passou. A diferença começa logo no discurso. Para os africanos, as independências foram uma luta. Nós, portugueses, falamos em guerra”, diz. “A guerra não terminou com as pessoas que estiveram envolvidas, com as pessoas que lá morreram. Caminha com as gerações que vieram depois. As comunidades africanas em Portugal enfrentam situações de racismo e xenofobia. O que é estranho quando nos apregoamos como povo acolhedor. Os pressupostos não são assim tão diferentes” dos que estiveram por trás do colonialismo, conclui. Falta descolonizar a cabeça.

O festival irá apresentar 14 filmes, na sua maioria documentários, e em muitos deles sente-se, de facto, a experiência colonial como uma continuidade no tempo presente e não como passado. Grande Hotel, o documentário de Lotte Stoops (sábado, 23, às 21h30, Cinema São Jorge), é emblemático: um hotel luxuoso para brancos construído na Beira, em Moçambique, durante o período colonial – “o melhor de toda a África”, diz o locutor de um jornal de actualidades –, é hoje uma grandiosa favela em risco de colapso onde vivem milhares de pobres sem possibilidade de sair. As autoridades locais gostariam de demolir a ruína e usar a propriedade para fins comerciais, mas não o podem fazer por falta de recursos e porque não detêm direitos sobre o terreno.

Quase todos os filmes que vão ser exibidos são títulos que tiveram pouca circulação, ou que dificilmente podem ser vistos de outra forma. A produção cinematográfica sobre a temática colonial “não abunda”, diz Paula Nunes. “Pelo menos, não abunda na perspectiva do outro. Na maioria, a perspectiva é do colonizador. E os que existem acabam por fazer os circuitos dos festivais. Queria fugir àquilo que é mostrado sempre”, explica. As propostas são muito diversas, e vão desde Convention, de Joris Lachaise, um ensaio pessoal, na senda de Chris Marker, sobre os limites da representação de África quando filmada por um realizador branco, europeu, natural de um país colonizador  (segunda-feira, 25, às 21h30), ao didáctico Africa, History of a Continent (segunda-feira, 25, às 19h30), documentário francês que explica as origens do colonialismo desde o final do século XIX  como se fosse uma lição de História, concedendo a palavra apenas a interlocutores africanos (Joaquim Chissano, Wole Soyinka, etc.)

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Convention

Para além de filmes, haverá conferências e debates, dois deles moderados por General D, o rapper que na década de 1990 criticou a suposta integração das comunidades de origem africana em Portugal e denunciou o racismo. “Demos-lhe carta aberta para escolher os convidados e a temática das conferências”, diz Paula Nunes. A conferência de sábado, às 19h30, intitula-se O passado no presente, a herança do colonialismo na sociedade e cultura portuguesas e conta com Maria Paula Meneses, especialista em pós-colonialismo e identidade africana, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a escritora angolana Ana Paula Tavares e Sérgio Dundão, professor universitário em Angola, que falará sobre a desigualdade racial em Portugal. O segundo debate, no domingo às 19h30, junta jovens afrodescendentes sob o mote Como fazer futuro hoje. Hoje, às 19h30, na conferência Filhos da guerra, a jornalista do PÚBLICO Catarina Gomes, o sociólogo Luís Graça, e Rafael Vale e Reis, especialista em direito biomédico, falam sobre a geração de descendentes africanos que os soldados portugueses abandonaram depois do fim da guerra, sem assumir a paternidade, e que ainda hoje buscam o pai português e nacionalidade portuguesa – quase sempre, sem sucesso.

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